segunda-feira, agosto 01, 2005
Uma noite de chuva
Os primeiros acordes de um Inverno desejado, começavam a fustigar os vidros das janelas, com gotas finas, intensas, inteiras. Não sei qual o mês, mas sei que era um mês de Inverno. Fazia frio e chovia. E aqueles pequenos riachos a descerem pelos vidros da janela. Sofia, de seu nome, assistia, com uma ligeira palidez no rosto, o cair das águas. Naquela noite estava só em casa. Como todas as outras noites passadas e, possivelmente, todas as noites seguintes. Momentos antes de a chuva cair, era ela que sentia a desfazer, num desagregar de sentidos e desejos e, lentamente, como as gotas da chuva pelos vidros da janela, o seu corpo se dissolvia e resvalava até ao chão. O trovão, a muitas léguas de distância, a fez estremecer, não por medo, mas apenas porque entendeu como sinal. O seu sinal. Era a sua vez, assim o entendeu. E obedeceu.
Com a solenidade que o momento obedecia, deitou-se. Nua. Tinha aberto as janelas. Escancaradas. Ninguém a podia lobrigar. Mas se tal acontecesse ela pouco se importava. Naquele momento nada tinha a menor importância. O vento, no seu fustigar rítmico, atirava a seus pés algumas gotas que se derramavam a seus pés. Humildes e dominadoras. Sofia desceu da cama. Desejou que as gotas molhassem os seus joelhos. Encharcassem as suas coxas, inundassem o seu sexo e desaguassem entre os seus seios. Desejou que a chuva cobrisse todo o seu corpo. O arrepiado da pele, as tremuras do corpo, era a menina a renascer. A menina que ela nunca deixara de ser. E a chuva a querer entrar nela, possui-la, vencer a resistência que os pêlos ofereciam. E venceram. As águas desvirginaram a Sofia. Cada gota que a formavam a possuía com a doçura de um beijo, a força de uma vontade. Com todos os sentidos da natureza que tanto ela sentia falta. Que ela gritava nos silêncios de noites perdidas.
Suas mãos percorreram todo o seu corpo num suave passeio de descoberta. O vento crescera na sua força e assobiava pelas frestas. Entretanto a chuva já cobria todo o leito. Ensopava os lençóis, ultrapassara os travesseiros e entranhara-se no colchão. O trovão, há momentos longínquo fizera o seu percurso e já estava próximo, fazendo com que os seus raios iluminassem o quarto com a força de posse. De corpo nu, estendeu um braço e, num só movimento, arrancou as cortinas de seda se rosa pálido que dançavam, como ela, com a chuva, abraçadas ao vento. E elas, as cortinas, no seu voltear, molhadas, inteiras a desafiavam. A chuva, desavergonhada, possuía ambas, mas Sofia, atentada pelo ciúme, não deixou. Queria ser a única. Se achava com direito.
Ela, cheia de pedaços da cortina de seda rosa pálido, envolvendo o seu corpo nu, desceu as escadas, escancarou a porta e correu para o pequeno relvado em frente. Entregou-se para as águas por inteiro e, de rosto virado para o céu, deixou-se possuir, sem segredos e sem reservas. Sentiu-se ser dominada por um calor intenso que percorreu todo o seu corpo, enquanto que pela pele, as gotas se espraiando, geladas, formavam pequenos sulcos. Deitou-se na verde relva, liberta já do tecido de seda que envolvia seu corpo. A seu lado, as folhas como ela, faziam amor com a chuva. Enlouquecidas. Lindas e sedentas na sua gratidão.
Sofia cravou na terra as suas unhas, pouco se importando se as estragava, e começou a arrancar toda a relva ao seu redor. Ninguém, a não ser ela, podia possuir a chuva e ser possuída por ela. Os seus gestos volteavam lançando ao ar pequenos fragmentos de relva que logo desciam para cobrirem todo o seu corpo. Terra, relva e toda a sua nudez. Estava quase a sentir o prazer supremo, o arrebatar de sentidos, o subir e descer, o ser menina, mulher e fera, quando o último fragor soou. Ergueu-se e abraçou-se ao tronco de uma árvore cujo nome esquecera. Olhou ao seu redor e admirou todas as coisas que a rodeavam e que até àquele instante nem reparara, todas as plantas, todas as casas silenciosas, todas as pedras molhadas, todos os homens saciados, a chuva a todos possuíra. Decidiu cessar a resistência e entregou-se, se abriu e se ofereceu, sem se importar quem mais a chuva possuía, além dela. Deixou de sentir ciúmes. Gemeu deliciosamente como jamais o fizera. Marcou os dentes no seu punho, lambeu os seus próprios lábios e fincou os pés e as mãos na relva molhada e a ela se entregou. Completamente em puro extasie, seu corpo foi percorrido por fortes espasmos, era uma miragem viva, branca e pura, sobre a terra e a relva. Levados pelos ventos, voaram os pedaços de seda rosa pálido. De si perdeu a noção, já não sabia quem era ela, onde começa e onde termina. No seu interior não queria nem principio nem fim.
O vento ía perdendo as suas forças e a vontade de ficar. Também a chuva se despedia. E assim Sofia adormeceu, com o rosto inundado de felicidade e o corpo saciado. Acordou com o primeiro raio do dia acariciando a sua pele. O seu corpo tinha expulsado as gotas de chuva. Passaram as horas e tantas foram. E ela nem se dera conta. A seu dele, de pé, ele a olhava. Reprovação no olhar. Encolheu os ombros com uma falsa tristeza, arrumou numa mala as suas roupas, deu-lhe um beijo e partiu. Nunca mais voltou.
Ele sempre a tinha divido com outras e Sofia bem o sabia. Naquele momento já nada importava. Nunca lhe proporcionara tanto prazer como naquela noite, talvez adivinhando o inevitável da despedida. Sorriu quando ele batera com a porta. Estava livre. Olhou a cama, onde tudo começara, já quase seca.
Sofia naquele momento não queria se preocupar com mais nada. Sabia que, como a chuva, todos eram livres para dar prazer a quem quiser. Deixou que viesse todo o resto do seu pranto, bêbado de chuva. E dormiu pesadamente, por mais outras horas.
Acordou e não era a mesma. Olhou-se no espelho e sua tez era rosada. Pelo resto da sua vida, deitou-se com chuvas que passavam. E gozou todas as vezes que sua cama lhe era dada como abrigo. Descobriu que ele nada mais fora do que uma simples gota de toda uma noite de chuva.
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13 comentários:
Este texto é uma autêntica viagem a imaginação. Os meus aplausos. Grande abraço
ola alexandre. agradeço o teu comentario ao meu "maria rapaz". e por curiosidade li o que escreveste também... gostei muito.
abraço da leonor
ah! e as fotos... admiráveis.
Que conto surpreendente! Ao longo deste texto a vida pulsa, caudalosa, como súbita revelação. Gostei muito desta imensa vibração! Nota: fantástica, a delicadeza com que escreves aquela Sofia...
Alexandre,
Sempre surpreendente... desta vez a metáfora prolongada à capa mágica de um subtexto por demais real...
Sorrio-te num beijo...
E que chuva fantástica...gostei tanto. Que bom voltar a ler-te...já tinha saudades, o tempo realmente não tem ajudado a fazer as visitas que tanto gosto.
Jinhos
poderoso texto de posse e exaltação. Bjs e ;)
lindo :O) ja agora vou linkar te espero q nao te importes
bjinho
Olá Alexandre mais uma vez navegar e vir até aqui ao teu mar de belos textos é fantástico, como eu gosto de embrenhar por o teu mundo. Beijos amigo e Bom fimde Semana
Venho dar-te os PArabéns por um ano de belos textos e arte. Espero q nunca te canses de nos mostrar o q escreves pq eu sei q nunca me cansarei de te ler!
Um beijo grande
Impressionante. Pudessem todos os seres libertar-se assim. Pudessem todos os ssres escrever desta forma.
cheguei e percorri-te.
E gamei uma coisita, mas isso não interessa nada.
Eu até nem conheço essa tal de Sociedade dos Autores (mais uma promíscua que por aí anda, certamente)
§(~_~)§ beijo da Afrodite
http://afrodite4.blogspot.com/
Numa coisa a ignorante e inconveniente da Afrodite tem razão:
Dá vontade de ler tudo.
//(~_~)\\ um beijo da Titas
Fica sempre um sabor a pouco...!
bjokas ":o)
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