sábado, agosto 20, 2005

Escrevi teu nome

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Andei perdido por campos e vales, caminhei por prados, serpenteei por entre as árvores, procurei muros esquecidos ainda não demolidos, tirei os sapatos e caminhei descalço na areia molhada da praia deserta, ergui os olhos ao céu, estendi os braços para a terra, tudo para encontrar o espaço certo e apenas o vazio abracei. Foi então que decidi escrever o teu nome nas portas e janelas. Essas eu sei que as posso abrir. Queria também saber te desenhar. Não em telas com pincéis e tinta. Essas com o tempo precisam de restauro. Mas não vou conseguir, bem sei. Tentar quem sabe… Era só para poder mostrar os teus traços perfeitos, a luminosidade do teu sorriso, a tua boca cheia de beijo. Queria que as minhas mãos pudessem reproduzir os contornos e com um leve toque fazer sobressair a textura aveludada da tua pele. Há um não sei quê de etéreo no teu peito, um calor que parece ter uma conexidade directa ao meu. Pode ser ilusão, pode ser sonho, pode ser fuga, pode ser o que seja, mas pode. Uma ponte, uma passagem, um caminho entre o meu coração e teu.

Resolvi despir-me de todos os meus medos. Atirei para longe naquele dia ao fim de tarde, lembras?, entre lágrimas e abraços, num afoguear precipitado e covarde. Depois dali, as folhas caídas de finais de Outono, cúmplices de uma dor antecipada que talvez jamais possa vir a acontecer, deixaram-me antever o demasiado óbvio, aquele medo que é filho do amor imenso que corre entre desejos e sonhos meus. Rápido. Mas com a certeza do desfalecer. Apressado. Mas inegável.

O riso silvado das hienas corta o silêncio da noite na expectativa de um vacilar, mas ambos sabemos que elas vão sucumbir à certeza de que não podemos mais fugir, desta vez vamos agarrar todos os medos de tantos anos, os meus e os teus juntos. E tantos são. Tu sabes e eu sei que somos velhos demais para sermos tão estupidamente inocentes. E jovens demais para envelhecer tão depressa com todos os nossos medos.

São imensas as histórias que temos para descobrir, tantas são as causas para contar e em desfilada defender. Todas aquelas pequenas grandes coisas que povoam os nossos sentidos, as cores que nossos olhos admiram, poesias que nos fazem estremecer, de imagens e amigos, de amores e paixões, de sexo que fizemos e desejamos repetir, de épocas que vivemos e muitas outras que ansiamos viver, de todos os sonhos que restaram e tantos outros que se foram. Sabemos ambos que temos aquele abismo dos anos que se foram e a gravação das imagens que nunca tivemos oportunidade de vermos juntos. Mas a ponte que atravessa o rio que nos separa, apesar de imensa nos une. Os seus alicerces são de concreto testado, granito provado, ferro forjado na bigorna do inferno. Toda aquela mistura de materiais, de que não somos totalmente alheios, que serviram para solidificar tudo o que construímos nas nossas buscas diárias. Metal e algodão.

Todos os encontros que idealizamos em cada pormenor, cada gesto construído segundo a segundo, neste entretanto, no antes do nosso reencontro, foram apenas ensaios, tantos vezes infelizes e frustrados, para que finalmente os nossos braços se fechassem em redor dos nossos corpos. Nesse instante descobrimos o que já há muito sabíamos; nascemos para ser cor da mesma pintura, notas da mesma música, palavras do mesmo verso, águas do mesmo rio.

Aqui derramo os ciúmes dos dias em que não fui testemunha dos teus risos, não enxuguei as tuas lágrimas com beijos, não participei dos teus gozos e prazeres e não chorei as tuas frustrações, dos fios de cabelo que têm mais tempo contigo do que eu.

Hoje festejo o aniversário de quando os meus lábios casaram com os teus, num ritual silencioso, que redescobri o amor na sua plenitude, que fecho os olhos e vejo o teu rosto, que faço de ti protagonista de todos os meus sonhos e és a fonte de todos os meus desejos, todos os dias, em cada amanhecer.

Toda a beleza que vejo nos teus traços são reflexos das tuas formas e cores perfeitas. Que a perfeição seja apenas o amor que vês em mim. Igual ao que vejo em ti. Na mesma medida. Sem medida alguma. Envolto nas mesmas regras, sem regras nenhumas. E que caminhe tranquilo, meses e anos vindouros, sôfrego por não se bastar. O amor, recheado de paixão, nos faz querer sempre mais e nunca se bastará.
A minha fonte, porém, acaba aí: em ti. Onde está toda a vida, todo o extravasar, toda a beleza, todo o encaixe para o meu corpo e meus sentidos.
Aquém e além do que é óbvio ser dito, que jamais direi pois, como tantas outras, estas folhas de papel, vão cair amarrotadas no cesto dos papeis. Tenho de apressar-me, o carro do lixo passa às dez horas.

segunda-feira, agosto 01, 2005

Uma noite de chuva

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Os primeiros acordes de um Inverno desejado, começavam a fustigar os vidros das janelas, com gotas finas, intensas, inteiras. Não sei qual o mês, mas sei que era um mês de Inverno. Fazia frio e chovia. E aqueles pequenos riachos a descerem pelos vidros da janela. Sofia, de seu nome, assistia, com uma ligeira palidez no rosto, o cair das águas. Naquela noite estava só em casa. Como todas as outras noites passadas e, possivelmente, todas as noites seguintes. Momentos antes de a chuva cair, era ela que sentia a desfazer, num desagregar de sentidos e desejos e, lentamente, como as gotas da chuva pelos vidros da janela, o seu corpo se dissolvia e resvalava até ao chão. O trovão, a muitas léguas de distância, a fez estremecer, não por medo, mas apenas porque entendeu como sinal. O seu sinal. Era a sua vez, assim o entendeu. E obedeceu.

Com a solenidade que o momento obedecia, deitou-se. Nua. Tinha aberto as janelas. Escancaradas. Ninguém a podia lobrigar. Mas se tal acontecesse ela pouco se importava. Naquele momento nada tinha a menor importância. O vento, no seu fustigar rítmico, atirava a seus pés algumas gotas que se derramavam a seus pés. Humildes e dominadoras. Sofia desceu da cama. Desejou que as gotas molhassem os seus joelhos. Encharcassem as suas coxas, inundassem o seu sexo e desaguassem entre os seus seios. Desejou que a chuva cobrisse todo o seu corpo. O arrepiado da pele, as tremuras do corpo, era a menina a renascer. A menina que ela nunca deixara de ser. E a chuva a querer entrar nela, possui-la, vencer a resistência que os pêlos ofereciam. E venceram. As águas desvirginaram a Sofia. Cada gota que a formavam a possuía com a doçura de um beijo, a força de uma vontade. Com todos os sentidos da natureza que tanto ela sentia falta. Que ela gritava nos silêncios de noites perdidas.

Suas mãos percorreram todo o seu corpo num suave passeio de descoberta. O vento crescera na sua força e assobiava pelas frestas. Entretanto a chuva já cobria todo o leito. Ensopava os lençóis, ultrapassara os travesseiros e entranhara-se no colchão. O trovão, há momentos longínquo fizera o seu percurso e já estava próximo, fazendo com que os seus raios iluminassem o quarto com a força de posse. De corpo nu, estendeu um braço e, num só movimento, arrancou as cortinas de seda se rosa pálido que dançavam, como ela, com a chuva, abraçadas ao vento. E elas, as cortinas, no seu voltear, molhadas, inteiras a desafiavam. A chuva, desavergonhada, possuía ambas, mas Sofia, atentada pelo ciúme, não deixou. Queria ser a única. Se achava com direito.

Ela, cheia de pedaços da cortina de seda rosa pálido, envolvendo o seu corpo nu, desceu as escadas, escancarou a porta e correu para o pequeno relvado em frente. Entregou-se para as águas por inteiro e, de rosto virado para o céu, deixou-se possuir, sem segredos e sem reservas. Sentiu-se ser dominada por um calor intenso que percorreu todo o seu corpo, enquanto que pela pele, as gotas se espraiando, geladas, formavam pequenos sulcos. Deitou-se na verde relva, liberta já do tecido de seda que envolvia seu corpo. A seu lado, as folhas como ela, faziam amor com a chuva. Enlouquecidas. Lindas e sedentas na sua gratidão.

Sofia cravou na terra as suas unhas, pouco se importando se as estragava, e começou a arrancar toda a relva ao seu redor. Ninguém, a não ser ela, podia possuir a chuva e ser possuída por ela. Os seus gestos volteavam lançando ao ar pequenos fragmentos de relva que logo desciam para cobrirem todo o seu corpo. Terra, relva e toda a sua nudez. Estava quase a sentir o prazer supremo, o arrebatar de sentidos, o subir e descer, o ser menina, mulher e fera, quando o último fragor soou. Ergueu-se e abraçou-se ao tronco de uma árvore cujo nome esquecera. Olhou ao seu redor e admirou todas as coisas que a rodeavam e que até àquele instante nem reparara, todas as plantas, todas as casas silenciosas, todas as pedras molhadas, todos os homens saciados, a chuva a todos possuíra. Decidiu cessar a resistência e entregou-se, se abriu e se ofereceu, sem se importar quem mais a chuva possuía, além dela. Deixou de sentir ciúmes. Gemeu deliciosamente como jamais o fizera. Marcou os dentes no seu punho, lambeu os seus próprios lábios e fincou os pés e as mãos na relva molhada e a ela se entregou. Completamente em puro extasie, seu corpo foi percorrido por fortes espasmos, era uma miragem viva, branca e pura, sobre a terra e a relva. Levados pelos ventos, voaram os pedaços de seda rosa pálido. De si perdeu a noção, já não sabia quem era ela, onde começa e onde termina. No seu interior não queria nem principio nem fim.

O vento ía perdendo as suas forças e a vontade de ficar. Também a chuva se despedia. E assim Sofia adormeceu, com o rosto inundado de felicidade e o corpo saciado. Acordou com o primeiro raio do dia acariciando a sua pele. O seu corpo tinha expulsado as gotas de chuva. Passaram as horas e tantas foram. E ela nem se dera conta. A seu dele, de pé, ele a olhava. Reprovação no olhar. Encolheu os ombros com uma falsa tristeza, arrumou numa mala as suas roupas, deu-lhe um beijo e partiu. Nunca mais voltou.

Ele sempre a tinha divido com outras e Sofia bem o sabia. Naquele momento já nada importava. Nunca lhe proporcionara tanto prazer como naquela noite, talvez adivinhando o inevitável da despedida. Sorriu quando ele batera com a porta. Estava livre. Olhou a cama, onde tudo começara, já quase seca.

Sofia naquele momento não queria se preocupar com mais nada. Sabia que, como a chuva, todos eram livres para dar prazer a quem quiser. Deixou que viesse todo o resto do seu pranto, bêbado de chuva. E dormiu pesadamente, por mais outras horas.

Acordou e não era a mesma. Olhou-se no espelho e sua tez era rosada. Pelo resto da sua vida, deitou-se com chuvas que passavam. E gozou todas as vezes que sua cama lhe era dada como abrigo. Descobriu que ele nada mais fora do que uma simples gota de toda uma noite de chuva.