quinta-feira, outubro 05, 2006

No inicio era o verbo




Sempre que a noite chega,
a solidão vem me falar de ti.
E a saudade penetra em meu coração
como um pouco de luar
dentro de minha noite imensa.
Vai deixando aos poucos seu toque magnífico
de beleza e suavidade.
Vai deitando prata nos recantos mais sombrios.
Vai enfeitando de luz as flores mais singelas.
Assim é a saudade.
Consegue transformar em beleza
a tristeza infinita do presente...
porque traz para mim o encanto
das horas mortas do passado.

domingo, janeiro 29, 2006

Diário de um alma errante (V)

Noite 14.715


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Há noites em que, com o meu eterno caderno de capas pretas aberto, esferográfica entre os dentes, olhando o vazio que me envolve, tento ordenar os sempre desordenados pensamentos, procurando, muitas vezes em desespero, uma lucidez transformada em palavras legíveis e compreensíveis, não apenas para mim própria, mas para quem, um dia, estes cadernos caiam nas mãos. Confesso a minha incapacidade, pois são mais as vezes em que abandono o caderno, sem que uma linha seja escrita.

Esta noite decidi não pensar e permitir que os dedos sigam o seu curso, no desenho das palavras que o desconexo ditar. E depois esta chuva a fustigar as vidraças e o frio que nenhum aquecimento consegue vencer.

Qual o momento em que somos concebidos, num acto de amor, raiva ou acaso, determina o caminho que vamos percorrer? Somos o feto e, enquanto tal, pertencemos a um todo, respiramos angústias, sentimos alegrias e sorrimos quando recebemos transmissões de prazer, até ao momento em que, como um corpo estranho, somos expulsos do casulo de protecção e dois nomes são retirados do dicionário: mãe e filha. Mas a que foi chamada de mãe, não vai se libertar de imediato, pois é preciso calar a boca do pequeno ser que, sôfrego, agarra o seio que lhe é oferecido, ainda com um sorriso tímido e receoso. Os seus braços tentam aconchegar o mais possível ao seu corpo, para que o interior não faça tanta falta aqui fora. Pelo menos não tão já.

Apesar de verão, o frio é forte, dominador, é preciso fogo para salvar o pequeno ser, fogo da carne, quentura do peito da mãe, chamas de um amor que vai crescendo, tomando consciência da sua própria existência. Um saber que nenhuma faculdade do mundo consegue ensinar. Ela sempre sabe o que a gente precisa ou deseja e, naquele instante aceitamos o que vier. Se doce for, os traumas serão menores. Se amargo, vai ficar a marca e fica difícil digerir depois.

Podemos sorrir, até mesmo rir, mas as agressões que sofremos durante toda a vida, até mesmo quando bebé, fica escrito em sangue na nossa testa. Aquele momento em que levamos uma palmada em público, por algo que a nossa idade ordenou, muito longe de um extermínio de um povo. Naquele dia em que estava muito frio e ninguém nos estendeu um cobertor. Quando suplicamos por aquela boneca de trapos, vendida na feira por tuta-e-meia, recebendo em troca uma palavra amarga.

Nunca fui uma criança fácil, reconheço. Acho que ainda sou. Sei as causas dos males, ainda guardo a imagem de cada buraco em mim, cada tiro desferido, mesmo aqueles que falharam o alvo. Sei quem sou, apesar de não saber para onde vou. Sei quem é quem e também sei que pouco posso fazer para apagar esse passado. Sair por aí fora com uma metralhadora e apontar para a cabeça de todo o mundo, eliminando inocentes e culpados, eu sei, em consciência ser impossível. Não que, por vezes, a vontade não cresça. Quem sabe se não seria uma forma de acabar com as guerras, todas essas que por aí abundam. Fazer de mim a causa. Absorver todo o pó que o vento levanta em todas as estradas de terra, não ía adiantar muito. Cuspir na cara dos meus anos não vai me salvar e, por enquanto, não sou capaz de colocar fim em mim mesma. Sorrio, enquanto escrevo, pelo ridículo de todo este pensamento.

Pelo caminho ficou um casamento, um emprego que se perdeu e uma esperança que não renasceu. Por agora tenho este caderno de capas pretas e, de quando em vez a companhia um tanto fugidia de um pouco de calor, a quentura de um corpo apressado, uns momentos de prazer e noites, muitas, de solidão.

Hoje eu não queria. Juro que hoje eu não queria. Não queria pensar nele, nos seus olhos que brilham quando sorri ou quando escurecem com o que ele, teimosamente chama de lágrimas, por saber que não deseja fazer a troca. Por aquela mentira, que ambos tão bem sabemos, um dia eu faço. Não vai fazer. Eu sei. Ele sabe. Aqui eu procuro na reminiscência da minha meninice, qual a marca que identifique esta minha solidão.

Parou de chover. Parou, mas eu ainda estou com muito frio. Puxo para mim a manta, tentando ganhar coragem para ir para a cama. Dois travesseiros, uma só cabeça, para neles deitar. Estender um braço e encontrar o vazio. Não sei se era isto que eu queria escrever hoje, mas foi isto que escrevi.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Diário de um alma errante (IV)

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Noite 14.695


Foi ontem, depois de despir os trapos do dia e enfiar o conforto de umas calças e uma camisola, largas que se fartam, mas que me dão uma sensação de liberdade e conforto, da qual me recuso a dispensar. A roupa ideal para aquele abandono do fim do dia, quando temos a certeza que não vamos ter nenhuma visita e nos deixamos afagar pela quietude do silêncio da casa.

Tinha mais preguiça do que fome, pelo que arranjei, de um jeito indolente, uma sandes de queijo, uma maçã e um copo de sumo. Decidi que esse seria o meu jantar. Num exercício de equilíbrio levei tudo nas mãos, deixei-me cair no sofá, com um suspiro de cansaço e coloquei na mesinha em frente. A mesma cuja principal utilidade é permitir-me estender as pernas e apoiar os pés. Ainda não consegui outro uso que não esse.

Foi no momento em que endireitava o corpo que reparei num pequeno rectângulo colorido no chão. Tratava-se de um pequeno calendário de bolso. Deve ter caído da carteira, pensei. Para quem, como eu, que nunca sabe a quantas anda, um calendário é um bem precioso. Apanhei-o do chão e virei-o de um lado para o outro. Reparei no ano. Um calendário de há cinco anos. Um círculo feito com uma caneta azul, marcava um dia do quinto mês. Ia levar o copo de sumo aos lábios, mas fiquei a meio do movimento. Fechei os olhos, mas as imagens, nítidas, insistentes, em três dimensões continuaram volteando à minha frente. Foi nesse dia que nos conhecemos, naquela pequena loja de animais. Compravas comida para o teu cão e eu, umas guloseimas para o meu gato. Sorrimos e falamos de animais. E assim aconteceu e eu marquei o dia com um círculo a azul.

Alguns dias depois voltamos a nos encontrar no mesmo local. Dessa vez trocamos as nossas compras, eu comprava alimento e tu, guloseimas. Sem saber muito bem porquê, os nossos sorrisos foram um pouco diferentes. Nem mesmo sei de quem partiu o convite para um café, não que isso tenha grande importância.

Não entendo muito bem porquê, mas no princípio é sempre o verbo. O verbo e aquela excitação do primeiro contacto, daquele roçar leve dos lábios, uma fugidia carícia, aquele pele com pele. E esse momento nada mais é do que a simples conjugação do verbo. Sinto que é um verbo difícil de se conceber, de sentir o germe de um todo e mais difícil ainda de se expelir e eu sei, oh, como sei!, o quanto é importante despachá-lo para conquistar o equivalente a um fio de cabelo que seja, de liberdade.

Cinco anos. Cinco anos de prazeres exultantes, de mentiras concebidas no desejo, de ausências, de presenças fugazes, de silêncio prolongados, de gritos perdidos no deserto, ilusões de uma realidade por parir.

Atirei com o pequeno rectângulo para cima da mesinha e conclui que tinha perdido o apetite, mas decidi dominar a vontade no que seria mais uma cedência e, com esforço continuei a comer. As recordações alimentam a alma mas não o corpo, pensei com algum sarcasmo e dei-me conta que sorria.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Marx ou Deus?

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Nota introdutória.
Quando iniciei estes espaços, mais conhecidos por blogs, depois de ter viajado por largas dezenas e ter descoberto um mundo absolutamente fascinante, resolvi fazer duas promessas a mim mesmo. A primeira era que jamais me meteria em politica (chegaram os cinco anos em que fui director de um jornal) e a segunda é que nunca falaria na minha pessoa. A razão da primeira, e isto dito de uma forma directa e simples, é que a politica me enoja. Ponto. Quanta à segunda existem várias vertentes. Começo por dizer que admiro as pessoas que se desnudam nos seus blogs, eu não tenho essa coragem, a seguinte é que a minha vida é tão sem interesse, que prefiro o mundo da invenção.

Este texto que hoje aqui insiro, foi a pedido e foi um Editorial que escrevi no final de 75, na altura em que o meu filho mais velho tinha entrado para a então terceira classe. Mais uma vez não vou tecer comentários. Transcrevo apenas o Editorial. Nem imaginam as reacções que tive. Fui chamado de todos os nomes existentes e muitos outros inventados. Mas valeu a pena. Só porque fui lido. Apenas por isso.



Tem oito anos o Miguel Alexandre e vai este ano para a terceira classe. Numa das conversas que habitualmente temos, fez-nos perguntas sobre Deus, religião, origem da humanidade, o céu como habitação dos que morrem, etc. Perguntas alicerçadas em ideias um tanto confusas e até falsas, denotando um perfeito e total desconhecimento. Perguntas oriundas de conversas de brincadeiras com outros miúdos e de palavras ouvidas aqui e além, sem nexo, sem base. Falhas em absoluto de ideias,

Respondemos conforme pudemos e soubemos, sentindo que não havia a mais pequena coadunação entre a pergunta e a resposta, pelo que, constantemente, tivemos de rectificar a pergunta para encontrar o esclarecimento mais correcto possível. Sentimos não uma qualquer mistificação alienante de ideias, mas sim uma tremenda confusão e absoluta ignorância, factos que nos assustaram como pais e educadores.

Foi nesse momento que recordamos a leitura de uma local no jornal “O Concelho de Proença-a-Nova”, jornal que frequentemente aborda temas educacionais com profundidade e interesse, proporcionando-nos momentos de óptima e reflectida leitura. Trata-se de uma frase dita por uma criança à sua professora de instrução primária: “Minha senhora, os livros não falam de Deus!”

Folheamos, em exame mais atento e constatamos, mais uma vez que a Verdade continua na boca das crianças: os livros não falavam de Deus, como passavam praticamente em branco a nossa História,

Também fazemos eco de uma exigência justa de que o ensino tem de ser um natural direito de todos, pela que a sua democratização é absolutamente urgente e necessária, mas cremos ser também necessária uma democracia pedagógica. Não pode, nem deve, ser esquecido, o ambiente que rodeia a criança, fora dos livros escolares.

Através da leitura de Marx, verificamos que a laicização faz parte do seu programa ideológico. Esta concepção marxista do mundo e do próprio homem foi colocada de repente, e em pouco tempo, perante os espíritos ainda virgens dos nossos pequenos estudantes. E estes não conseguem encontrar a mínima ambiência que os tem rodeado, e ainda continua a rodear, quer queiram quer não.

Entendemos que o estudo sociológico de Marx ou de qualquer outro pensador deverá ser ensinado e até aprofundado o seu estudo; o contrário seria estropiar uma realidade cultural e um corte na liberdade de saber; mas isso não pode significar a eliminação pura e simples de uma raiz religiosa e histórica, que é bem nossa, e o negar essa realidade seria o mesmo que negar a nossa existência como povo, cuja história atravessou oceanos e, com toda a justiça nos devemos orgulhar. Que seria de um povo sem o seu orgulho histórico?

Aos pais compete exercer a sua responsabilidade no processo educativo dos seus filhos, intervenção perfeitamente reconhecida, mas sem as mínimas bases estruturais que permitem um efectivo exercício desse direito e dever.

Como pais temos uma palavra a dizer e é no diálogo conjunto que temos de procurar descobrir os caminhos e objectivos que permitam a construção do equilíbrio na educação dos nossos filhos.

Eliminar Deus dos livros escolares não esclarece as crianças das multifacetadas realidades que as rodeiam, neste conturbado momento, em que todos nós procuramos a melhor estrada a percorrer. Se anteriormente existia um certo excesso, em que o esclarecimento simples era sobreposto pela alienação e até uma certa mistificação história, actualmente verifica-se que existe a mesma sobreposição, só que, talvez, um pouco mais subtil, por isso mais perigosa, mas não o suficiente que a criança não descubra que os livros não falam de Deus.

Das escolas primárias deverá sair o homem de amanhã, formado para a liberdade, para a responsabilidade, imbuído de capacidade de abertura e receptivo aos valores morais e históricos a que pertence, pelo que a escolas não se podem dissociar da realidade humana e social do nosso País.

Não pode ser negado nem escondido a uma criança que inicia a sua formação, o contexto social português onde se encontra inserida, assim como toda uma realidade que a envolve.

Para que a sua participação na construção da sociedade se torne activa deve ser-lhe incutida a capacidade suficiente de olhar os factos, as situações envolventes e a informação possuídas de um desmistificado sentido critico à procura da verdade.

Destruir as raízes fundamentais do valor histórico de um Povo, seria destruir a nossa própria essência de homens.