terça-feira, novembro 29, 2005

Fim de semana Inesquecível

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Como era mesmo o nome dela? Boca de lábios carnudos, olhos azuis brilhantes, seios altivos, desafiadores, auréola rosada e bicos quase sempre erectos, e não estava com frio nem excitada, não naquele momento, coxas torneadas, cu de nádegas cheias, levantadas e redondas e o mais perfeito triângulo de pelos púbicos cuidadosamente aparados, numa simetria de perfeição, que tive o prazer de contemplar. Demasiado, na minha opinião, pois de vez em quando picava. Mas como era mesmo o nome dela? Tinha um sinal, que parecia um losango, visto do lado da coxa esquerda e um rectângulo quem mira do lado direito, três centímetros abaixo do umbigo. Rigorosamente. Tive o cuidado de medir. Com uma régua. Esta minha mania da precisão!

Foi numa tarde miraculosamente livre e eu vagabundeava pelos corredores dos meus vícios e prazeres, música e livros, mais estes últimos, no meu local de tertúlia solitária, a Fnac. Perco-me no meio dos vídeos, deixando que um qualquer titulo sorria para mim o suficiente para o retirar da prateleira. Daquela vez todos se mostraram sisudos. Paciência, por lá continuaram. Na música o espaço é mais limitado, como limitadas são as minhas preferências. Música que não me dê cabo dos tímpanos, que me obrigue a fechar os olhos e sonhar. É só isso que peço. Melodia. Não sou, nem quero ser, nenhum erudito na música. Se me proporcionar momentos de prazer, já me dou por satisfeito. Desta vez não encontrei nenhum disco novo da Bethânea, o último da Calcanhoto já o tinha e o Roberto, o meu Roberto Carlos só edita um por ano. Razão mais do que suficiente para mergulhar no meu mundo; os livros.

Vagueava entre todos aqueles títulos à procura de um que fosse minha companhia por umas horas. Pretendia um que não tivesse muitas páginas pois gostaria de chegar ao fim. Sem saber exactamente porquê e confesso que, no momento nem foi motivo de preocupação, apanhei um livro. Inventar a Solidão era o título e o seu autor Paul Auster, um ilustre desconhecido para mim na altura. Hoje faz parte da minha biblioteca. Mas se na música e nos filmes não sou lá grande aventureiro, nos livros e nas mulheres não hesito um segundo para me lançar no desconhecido e na aventura. E que prazeres intensos foram já descobertos!

Procurei o conforto do assento, suspirei de puro prazer um tanto lânguido, confesso, e enfiei a cabeça na primeira página. Ah, esqueci de dizer que isto se passou vai para mais de sete meses. Há que colocar as coisas no seu tempo certo.

Apesar de não ser uma escrita que nos agarra logo nos primeiros parágrafos e nos obriga a concentrar a nossa atenção sôfrega em cada linha, prendeu o meu desejo de leitura. Ia na página dezassete a iniciar o segundo parágrafo que começava assim, isto se a memória não me falha: “Um número de telefone rabiscado à pressa nas costas de um cartão comercial…”, quando levantei os olhos e a vi. Sentada quase à minha frente, pernas cruzadas, saia para além do meio das coxas, blusa rosa velho de generoso decote. Folheava, um tanto distraída, um livro de arte gótica. Voltei ao livro, à página dezassete e ao segundo parágrafo. Repeti a leitura da primeira frase e não passei da quarta palavra. Impossível ignorar o livro de arte gótica, ali mesmo, à minha frente.

Descruzou as pernas e as minhas esperanças se defraudaram pois usava cuecas. Só mesmo nos filmes. Como a olhava, possivelmente com uma cara de parvo, coisa que faço com muita facilidade, achou-se na obrigação de sorrir. E porque não? Estávamos num local público, cujos frequentadores eram seleccionados pela lei da ignorância. No “Tavares” é a lei do dinheiro que selecciona os clientes. Volteei o olhar pela floresta de livros e títulos, sem outro propósito que não fosse o disfarçar, porque para onde eu queria mesmo olhar era para as coxas e para o rego das mamas, que o decote tão generosamente deixava ver. Que diabo, um homem por muito que goste de livros também não é de ferro! Por instantes, menos de um segundo, fixei a capa de um livro de Marcel Proust. Mas não passou disso, pois logo regressei à razão do meu sobressalto. Como era mesmo o nome dela?

Voltou a sorrir-me e desta vez achou por bem dirigir-me a palavra. Fazer o quê, com o raio desta timidez! Não é que dure muito, mas no início é sempre assim. Depois acabo sempre de agradecer os cursos de oratória e retórica com um americano, que pouco falava português, no hotel Tivoli. Confesso que ainda hoje estou para entender como é que o tipo nos compreendia tão bem.

- Será que podemos estar aqui a ler livros? – Perguntou, inclinando-se para a frente. Um movimento natural ou propositado? Que se lixe! Eu cá gostei. Mais um pouco e conseguia ver-lhe o umbigo pelo decote. Dentes perfeitos. Bolas, nem tudo é pecaminoso!

- Este espaço é para isso mesmo. – Respondi. – Claro que acabamos sempre por comprar qualquer coisa. – Conclui, tentando explicar. Afinal aquilo não é nenhuma biblioteca pública.

- Venho aqui muitas vezes, mas é a primeira vez que me atrevo a sentar. Sorriu, endireitou o busto e trocou a posição das pernas. Desta vez não segui o movimento. Porra, quem me manda a mim ser educado?

Pensei responder-lhe que tinha escolhido o melhor momento. Claro que não fiz.

- Eu sempre me sento aqui um pouco. Quando tenho algum tempo livre, o que não acontece com muita frequência.

Mas que merda de presunção a minha. Senti-me um idiota chapado. Emprestei uma importância desmedida a uma coisa tão simples como sentar-me na Fnac e roubar uma ou duas horas de leitura. Onde tinha eu a cabeça? Repousando nas mamas ou entre as coxas dela? Bolas, não era isto que eu queria dizer. Mas que foi o que pensei no momento, lá isso foi. (Continua)

domingo, novembro 27, 2005

Em demanda

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Eu sei muito bem que tu sabes, mais do que adivinhas, que eu morro de raiva de ti. Desse teu jeito um tanto ridículo de fingir que não me queres, que não me desejas. Que não me olhas de soslaio quando nos cruzamos e o fazes todo o dia, a cada instante e, quando não estou, é esse o teu desejo. Que me respiras a toda a hora, sempre que cerras os olhos e o teu pensamento voa até mim pela madrugada dentro. Sabes o que me irrita? Essa tua atitude de construíres o engano, em mim, em ti e em todo o mundo. Tu finges e eu finjo que acredito e o tempo vai-se escoando por entre os nossos dedos. Eu sei, tu sabes e, na verdade, toda a gente sabe, mas nós teimamos em ignorar.

Não vou mentir, tu sabes que sou assim, porque isso digo que detesto essa tua mania de me evitar por serem fracas as forças de me resistir. Na verdade não é isso que desejo. Apenas anseio que termine a tua própria resistência e partamos em demanda do espaço que seja nosso. Essa tua constante dissimulação faz fraquejar a minha vontade e eu fico, sentado naquele penedo olhando o mar, única companhia da minha solidão. E desta forma tu escapas do meu pensamento e conquistas o meu desafecto. Morro de raiva de ti, do que sinto e não devia, do que sentes e não mereço. E toda esta vontade de afagar o teu rosto com a ponta dos meus dedos, de beijar o teu pescoço, de deixar a marca, a nossa marca. Aquela que só nós identificamos.

Gostaria de te arrancar desse teu esconderijo e voltar a afogar-me nesse teu cheiro e assistir ao lento progredir da química perfeita que os nossos cheiros possuem, deixar que a metamorfose se conclua. Ainda recordo aquele instante em que descobrimos a forma como eles se combinam para formar o perfume que sempre acaba por nos inebriar. Lembro que disseste entre risos cristalinos que, se pudéssemos prender num frasco, ele nos renderia uma fortuna. E eu respondi que ninguém vende a sua alma. Tu retorquiste com um beijo, cujo sabor ainda o mantenho.

E é aqui que eu sinto a raiva a crescer de não conseguir descobrir a fórmula, decifrar a equação e não encontrar outro cheiro que em mim seja o adequado. Inadequado é odiar o teu atraso, a tua distância, o teu propositado deixar andar. Um dia, talvez, quem sabe, quando tiver a certeza que não fico presa, que não te aprisiono, dizes. Ouço e fico no meu silêncio. A ele me abraço e deixo que me transporte para outros espaços, para outros tempos. Tempos que o tempo esqueceu. Mas tu não desistes e continuas não desejar construir um passado que ainda não vivemos.

Pensas que não sei, que tudo fazes para manter essa imagem de quem nada precisa, muito menos de mim, mas no fundo, os teus pensamentos são povoados com a minha presença e, apesar da distância, respiras o mesmo ar que eu. E é nesses instantes que descobres, mas não reconheces, que não sabes mais viver sem mim. Eu sei, tu sabes e, na verdade todo o mundo sabe. Para quê então as desculpas, mais para ti própria do que para mim, as fugas a uma realidade que já nos absorveu? Sabes que começo a ter medo desse teu medo? Essa é a razão porque o odeio, mais o meu do que o teu e nem me perguntes porquê. Não vais perguntar porque nessas tuas madrugadas de silêncios encontras sempre todas as respostas.

Detesto escrever em vão e sei que vais fingir que não leste, mesmo depois de ter imprimido e lido esta carta dezenas de vezes, até decorares cada palavra, saberes de cor a posição de cada vírgula. Mas fazes questão, com um ar apressado, que não leste, falta de tempo, justificas, não recebeste, explicas, atirando para outros uma responsabilidade inexistente.

Abomino essa tua maneira de fingir desfazer os meus sentidos, de desprezar as minhas coisas, as mais simples, aquelas que construí e todas as outras que sempre sonhei construir. Grito, de calças arregaçadas, pés descalços, no meio das ondas que se espraiam na areia. Falo em silêncio, olhando para o horizonte em todos os fins de tarde. Escrevo palavras que, apesar de afundado numa inconsciência, a minha consciência vai ditando e a caneta desliza pelo papel, falhando por vezes a tinta, o que me faz zangar. Por fim o nada e o nunca se conjugam e eu, exausto, deixo-me cair na cama onde sei que não vou dormir.

Confirmo na solidão da minha cama que és o pior pedaço de mim e detesto tanto carecer do teu sabor, da suavidade da tua pele, do estremecer do teu corpo, dos teus gemidos incontidos e sinto raiva desta minha tanta vontade de te ter. De ceder ao que o meu corpo suplica, ao que a minha alma implora. Todo este meu desejo de ultrapassar os limites, esta necessidade de sentir o teu sabor, esta louca vontade de te ter e toda a raiva em crescendo de ceder toda a vez que o teu corpo pede, a tua alma implora e sem nunca nada me dizeres. Tu sabes o quanto te preciso de te ler.

Recorda aquela noite quando, de cabeças encostadas, os braços apertando os nossos corpos e deslizamos pela pista de dança ao ritmo de uma quase valsa. O cantor não sabia, mas naquele instante, ao cantar o La Bohéme, do Aznavour, fez-nos voar até à nuvem mais próxima. E ficamos nos braços um do outro muito depois dos últimos acordes terem desaparecido no ar.

E são esses acordes quando ultrapasso os limites no teu colo, quando te sinto inteira em meus braços, quando acaricio os teus seios, quando beijo tua boca e quando todas as loucuras perdem sentido. Morro de raiva de te amar tanto. E é esta estúpida paixão que me faz querer-te cada segundo, completa, e procuro, em desespero, esconder em teu corpo toda a denúncia de um amor que ultrapassa as nossas vontades. A tua língua, essa do coração, que eu sempre tento aprisionar.

Sei que, num qualquer instante vou ceder à tentação de te matar de amor, de te violentar de prazer e deixar que a fogueira aumente.

E se queimar e a gente morrer.
E se acabar, que seja de vez.
Porque se não for inteiro, pela metade eu não aceito.
Eu te amo e te odeio.

Esta foi a carta que escrevi, que não enviei, que desconheces, pois não é mais do que uma carta perdida.

domingo, novembro 20, 2005

Noite de Chuva

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Podia dizer, filosofando, que perdi no tempo e no espaço, a recordação do gosto que tinha beijar alguém pela primeira vez, sem saber o que vai acontecer no dia seguinte, se tem mesmo que acontecer alguma coisa, mas com aquela sensação que não se vai encontrar no segundo encontro. Mas não digo, porque o primeiro beijo é algo que ultrapassa todos os nossos sentidos, que suplanta a nossa imaginação e que sempre nos faz reviver anos nunca vividos, sensações jamais sentidas. É como se, de repente, todas as nossas incertezas da juventude ganhassem de novo forma e nos dominasse, todas aquelas tremuras.

Perdera já nos confins da memória há quanto eu não sentia aquela interior timidez de encostar meus lábios de olhos fechados aos que, com igual receio, se aproximavam. O leve roçar e o ligeiro entreabrir e depois aquela vontade de me abandonar no colo de alguém. E permitir que viessem todas as palavras e sentimentos num correr suave, sem a preocupação com o que se vai pensar. Tinha mesmo esquecido como era delicioso dividir tudo, absolutamente tudo o que se tem vontade, sem disso se tomar consciência. Como as águas do rio, ou as noites de chuva. Deixar que as palavras brotassem ao ritmo da melodia que nos embalava, com uma certa timidez, sim, até mesmo com receio, mas sem temor de as dizer num sussurro, enquanto as nossas faces de roçavam e as nossas bocas chegavam aos ouvidos, proferindo as coisas que desejávamos ouvir, mesmo a não proferindo, por não necessário.

Esqueci mesmo os pactos dos começos e das promessas implícitas de liberdade, aquela que nos prende e nos ajuda a construir os alicerces. Não lembrava mais da sensação de medo, quando tudo acontece depressa demais, ultrapassa o nosso raciocínio e que nos transforma em indefesos de nós próprios. Perdera no tempo a noção dos passos, cada um deles, das etapas cheias de desordens, quando o que se sente é maior e mais intenso do que o que se pensa e o que se quer. Há quanto tempo eu não me sentia assim, tanto que eu já pensara ter perdido esse tempo.

Depois de dinamitar todas as pontes que me levavam a lugares incertos, atravessar paisagens mortas onde a água deixara há muito de existir, parei junto ao precipício e, naquele instante, tomei a decisão de iniciar a descida, só para ter a possibilidade de experimentar o prazer da subida, devagar, com passos firmes, mas tranquilos e chegar à outra margem. Quem sabe se não terei uns braços à minha espera e um regaço para descansar.

Desconheço em absoluto quanto tempo é que o tempo dura, nem mesmo sei se amanhã sentiremos o mesmo, mas acho que isso nada importa, nada tem importância a não ser o agora, porque é agora que todas as certezas nos dominam e eu sinto a vontade de reviver coisas que estavam adormecidas.

A culpa de tudo foi a chuva, aquela noite de chuva, que nos obrigou a correr para aquele abrigo exíguo e os nossos corpos se encostaram. Apesar de nada dizermos, tivemos a certeza que cada gota de chuva deixava em nossos corpos marcas indeléveis e nos nossos sentimentos uma selva de possibilidades e sensações a explorar. E toda aquela vontade a crescer. A mesma que, a cada instante, está sempre a regressar e a dominar. E assim ai ficar que não caiba mais, até que baste ou que nos obrigue a sair para a rua à procura de uma outra noite de chuva.

quinta-feira, novembro 17, 2005

Blues

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Abandona toda essa vontade, por vezes um tanto dispersa, de entenderes o mundo e o desejo que se mantenha em linha recta.

O corpo, o teu, o meu, até ao instante que não seja mais o meu ou o teu, o mesmo que teima em vergar numa desesperada tentativa de retorcer os poros, os mesmos que nossas línguas tantas vezes percorreram, os cantos que sempre tentamos percorrer com a lentidão de segundos parados, todo esse tanto que temos ou que desejamos.

Eleva a tua prece e desiste de uma vez do céu com poucas estrelas, do vestido cobiçado naquela montra, do carro cuja bateria resolveu deixar de cumprir o seu dever. Daquele pedaço de cabelo que veio numa carta sem remetente, do perfume encontrado na camisa e que ficou enjaulado nos teus pensamentos. Não é meu, não é teu, na verdade não é de ninguém, nem um sonho e muito menos um pesadelo, tudo se foi no comboio das dez

Com as tuas mãos de guerreira, espada em riste, corta o meu peito, fere os meus sentidos, trespassa o que é teu e depois, feita feiticeira, num toque de magia, que eu seja a perfeição dos teus desejos.

Se tal for teu desejo, mata-me com as tuas palavras, atinge meu peito com a tua indiferença, aumenta a minha surdez com os teus silêncios, deixa que a minha queda se processe no abismo mais fundo que a tua imaginação possa criar.

Permite que tudo se erga do submundo como força fálica pronta a temperar a dualidade, deixa que os teus passos te conduza para um espaço que não seja apenas solidão e intua como o feminino exige e presenteia na presteza e na simplicidade das coisas. Afinal somos os poucos que sobraram, as migalhas de um chão transformado em palco de cópulas desejadas e no ar aquela indolência dos blues que tanto apreciamos.

Se eu gritar promete que me calas, se eu virar pó promete que me espalhas, se eu virar promete que invertes. Estende, multiplica, soma e depois atira tudo aos ares e se souberes, reza para que nos juntemos completos numa incompletude e inquietude de alma gigante, a mesma que nunca conseguimos aprender a domar.

Tudo que é demais assusta e o medo nos arremata. Se eu quebrar, tu me colas?

domingo, novembro 13, 2005

Diário de um alma errante (III)

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Noite 14.630


Depois de uns quantos dias de ausência, os quais me recuso quantificar ou saber das razões, eis que regressas ao fim da tarde, o dia já fora e a noite apossara-se dos nossos sentidos. Noto cansaço no teu rosto e vejo um sorriso nos lábios. Chegaste até mim, apertaste-me nos teus braços, procuraste os meus lábios e prendeste a minha língua. Arrancaste a minha roupa e ali, no chão, fizemos amor. Sem uma palavra, sem uma explicação. Um sorriso nos lábios e um pedido de perdão no olhar.

Ainda ofegantes, acendemos um cigarro. Um ritual repetido, mas cada vez mais espaçado. Ficaste duas noites e depois partiste. Um até amanhã, um beijo e um tímido sorriso. E mais uns quantos dias sem saber de ti.

Não sei quanto tempo mais vou escrever neste diário, se alguma vez chegará ao fim ou simplesmente aguardo o rigor do Inverno, acendo a lareira, deixo crescer as chamas e atiro-o para o meio e fico sentada no chão a vê-lo arder, até que nada mais reste a não ser cinzas. Imagino o prazer que vou sentir ou a dor que vou sofrer.

Desconheço porque caminhos os teus passos deambulam, que outros braços te acolhem, que lençóis cobrem a tua nudez, mas uma coisa eu sei, não desejo receber toda essa violência deliberada, toda essa ausência premeditada. É urgente que atordoes os meus ouvidos com o grito definitivo para que eu, por fim, possa dançar sozinha, volteando por entre os móveis silenciosos, as notas tristes do meu eterno vinil que, teimosamente, insisto em conservar e que, de uma forma constante repete a mesma melodia de amor monológico, aquele amor monocromático. E negro, como aquele meu vestido de baile, aquele que vesti numa noite de luar e o usei na solidão da minha varanda porque, mais uma vez, não vieste. Foram outros os teus bailes dessa noite. Mas o negro profundo, esse ficou, o negro dos meus olhos.

Insisto em não desistir de mim mesma e os meus olhos de negro se transformaram em azuis e neles guardo todo o universo com os seus astros e estrelas que pode ser de uma luz fosca, até pode, possivelmente até anémica, mas uma certeza eu tenho, tu não podes ver o quanto eu posso ser iluminada a cada suave olhar esguio que me são oferecidos pelos sorrisos perdidos no ar. Tu me acusas de só oferecer sombras e disso me obrigas a acreditar, donde fujo e me refugio, agachada na muralha de carvão e cinzas, onde acendo o meu cigarro para que possas chegar até mim, um minúsculo ponto aceso e aguardo ouvir os teus passos. Em vão, eu sei, mas teimo.

Não pára nunca o vendaval feito furacão que rodopia nos meus ouvidos, até mesmo quando observo o sol, vermelho laranja, nascendo forte e brilhante no horizonte dos meus sentidos, através das vidraças da minha alma. Lá fora, por entre o casario, na busca de uma árvore, na poeira de uma estrada perdida no tempo, o mundo pode ser quente e aconchegante, pode até emoldurar o brilho dos meus olhos. Que não te vai ofuscar. O disco pode virar e a melodia se repetir ou o desafinado troar pelos ares. A palidez da minha pele ganhar os tons de uma rosa saudável, pétalas de uma verdadeira flor madura em primavera. Mas tu não vais estar presente.

Descobri algures, durante as minhas peregrinações pelos espaços que a tua ausência criou, um mar de cores misturadas numa paleta de um pintor enfeitiçado e onde eu posso me atirar, banhar o meu corpo, lavar o meu espírito um tanto cansado, aumentar o meu desejo de beijar os teus lábios, prendendo a tua boca como se estivesse mordendo uma fruta verde, vencer a tua resistência, ceder à tua insistência, sentir a pressão dos teus dentes e permitir que as nossas línguas sejam o alimento que mais aguça do que arremata a nossa fome.

Entrei na madrugada e o sono continua a vadiar algures por paragens distantes. Resta-me o silêncio desta casa, o vazio da tua ausência e as folhas deste caderno a serem manchadas com pontos e vírgulas.

Tu sabes, ambos o sabemos, que quero ficar contigo e não desejo que o nosso amor, se ele de facto existe, não continue a pairar no ar da incerteza. Tu sabes que eu sempre me resigno, acabo sempre por ceder aos teus encantos, louca imprudência! O meu corpo vai ondulando ao som de uma melodia e desejo que me acompanhes nesta dança cadenciada, num voltear por este espaço exíguo que é o meu quarto, num bailado quase pecaminoso. Pelo seu som de deleite, quase pairo no ar e deixo de sentir o chão num estranho júbilo e, no final, entrego-me toda a esta alegria que chega a perturbar a minha mente, este prazer de mentira que eu própria construí. E vou a correr tentar apanhar os flocos de neve de um frio que tento inventar e os espalho no deserto do Saara. Pequenas pedrinhas geladas que se desfazem quando tocam o calor imenso da areia. As palavras que se misturam em pensamentos incongruentes.

Sinto o saltitar leve das patas de um pássaro tocando, sem deixar marca, o meu coração duro, petrificado de dor e amargura. És culpado de uma culpa que jamais reconhecerás. Sei que, se um dia, por mero acaso, lesses estas páginas, não ias gostar e eu teria que ouvir as tuas zangas, as tuas frustrações e o teu esforço em renegar o sentimento de culpa. Se queres saber, pouco me importa, é assim que eu me sinto em mais uma madrugada. A ti, posso mentir, mas a mim, jamais o farei. Reconheço que, apesar de viveres de uma mentira, continuas a ser meu alimento e vicio e com firmeza me prendes com a mão, destróis a minha fortaleza em pedaços, roubas o meu escudo, trespassas os meus muros de enfado e humedeces o meu solo seco e perdido para qualquer semente. Mas eu continuo firme, resoluta e forte na minha debilidade.

Era meu desejo esquecer que toda esta solidão, nada mais é do que o preço a pagar por ser a outra. E essa sensação é mais forte, quando mergulho na banheira de água quente com leve espuma de sais perfumados. Quando acendo velas e fecho os olhos. Aí deixo que a quentura da água penetre na minha pele e as minhas mãos ganhem vida própria. Toco ao de leve os bicos dos seios, imaginando que são os teus lábios sôfregos e nesse instante sinto um ligeiro tremor no fundo da barriga e um calor que nada tem a ver com a temperatura da água. Resisto à tentação de baixar a mão, porque sei que isso só iria aumentar a minha solidão. Torna-la mais intensa, mais real. Mas o desejo é mais forte e deixo que tudo siga o seu curso. Uns gemidos perdidos no silêncio da casa, uns momentos de prazer solitário e uma vontade enorme de chorar.

Põe vezes recordo os meus tempos de criança, quando a mãe se convencia que o ballet deveria ser a arte que me envolveria no futuro e insistia nas aulas três vezes por semana. Não sei se acreditava mesmo ser o bailado uma carreira ou porque sentia prazer em dizer às vizinhas e amigas que a filha andava no ballet. Não durou a aventura, os meus pés eram de chumbo e o meu corpo desengonçado. Talvez por isso, hoje, apesar de me sentir um estado de graça não consigo executar esses passos de ballet delicados que a melodia interior me obriga a deslizar. É demasiada suavidade que contraria todo o meu jeito de sentir que neste momento me domina.

Tem momentos que não sei se falo contigo ou se me derramo na primeira pessoa nestas folhas de papel. Não que isso tenha importância, não procuro identificação e muito menos a solução de uma equação que não criei nem desenvolvi. Apenas sou e o simples ser é já para mim importante. Apesar de não passar de um desejo, aprecio a suavidade dos meus pensamentos, é como se fosse veludo roçando levemente a minha pele. Quero ser firme, rir ao perder a conta das estrelas do céu, gozar com tontices sem sentido, antes que seja obrigada a descer e tocar novamente no chão, sentir-me rija e presa ao que é meu, até mesmo ao que é da minha natureza mórbida. Aguardo o aviso de alguém de que estou a ultrapassar as fronteiras da mediocridade do meu viver. Algum anjo por aí perdido ainda esbarra comigo quando flutuo numa nuvem branca que, contrariando as ordens, por raiva, por despeito, ou sei lá porquê, tenta extirpar-me as asas alvas, mansas, ligeiramente desfeitas pelos tropeções e me tire esse pedaço de céu que eu bem sei que não me pertence. Demoro a descobrir que penetro em território perigoso, como perigosa é a minha alegria. A raiva surda cresce e eu sinto vontade de apagar o cigarro bem no meio do teu sorriso.

Ainda sinto no meu corpo o perfume dos sais de banho e isso me inebria em pouco. Sem muito saber porquê, sorrio enquanto olho as letras que tento desenhar com perfeição, sentindo cada movimento como se estivesse a fazer amor. E este é o momento em que recordo que às tu me vestes e cobres as minhas vergonhas. E eu só em ti posso aquecer-me, nessa tua pele quente mas com um coração tão frio. Tento ser dura, forte, mas no final acabo sempre a chorar. Confirmo que, no fim, sempre fico a perder. Porque raio hás-de ser tu mais esperto do que eu? Quando te sinto dentro de mim é como se toda a estrutura começasse a oscilar, a surgir rachas nos azulejos e o chão, esse, se abrindo em buracos sem fundo. É como me transformasses em solo erosivo. E depois vais para outras paragens, distribuindo sorrisos, falas, sentimentos. E eu fico aqui, até que a água da banheira esfrie e me faça tremer de frio,

sexta-feira, novembro 04, 2005

Sem Limites

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Quando achei que podia ter teus beijos,
Pelos prados a descoberto escapei
Para que a dor não extrapassasse
O limite que nos obriga a redimir formatos
Estereótipos desenhados
Num permanente sentir da paixão
Que brotou da inércia em que permanecia
As razões, essas, deixei que se escapassem
Corri noites com pés descalços
Em areias molhadas de praias desertas
Ansioso, desordenado, sequioso, faminto
Daquela maneira como me tocavas
Tão forte, tão intensa, tão intima
Mesmo quando era apenas a tua voz

Tu sabes, porque baixinho o confessava
Nunca te possuía sem antes te amar
Nos prados verdes, nas moitas escondidos
Nas folhas brancas espalhadas
E nos lençóis revirados
Como plumas ao vento
Num sussurro acordava-te
Ronronavas, estendias os braços e me recebias
Fechavas os braços e te abrias
Depois era o ressurgir de contos
Poemas de encantar
Melodias de enternecer
Depois era a entrega
Total, sem limites
Carícias envoltas em permanência
Preenchidas na comunhão de prazeres.
E, naqueles beijos
Abraços e carícias
Procuramos nos nossos corpos
Recantos escondidos, tão nossos conhecidos
E a cada instante, lento e demorado
Construímos, letra por letra, a futura poesia
Fizemos coro nos gemidos
Comungamos os prazeres
Misturamos o suor
E sentimos o gosto do envolvimento

Só tens que abrir a porta
Quando a campainha tocar