segunda-feira, março 28, 2005

A viela deserta

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Fui sentindo aquela frescura de noite barata, o jantar apressado naquela esquina perdida, depois o caminhar por uma viela deserta murmurando um credo rezado a dois. Inveja matou minha dureza, tombou o difuso na calçada da rua palmilhada por uns ténis que o tempo manchou, enquanto que as baratas, fugidias, se pavoneavam por entre as frestas. Protegias meus dedos entre os teus, num acariciar leve, inconsciente na consciência de um vibrar. Em nossos olhos o ignorar do leite derramado, apenas o sorriso permanecia, um deixa para lá, de não valer a pena. E tanto quanto possível, sorvias as pequenas gotas. Um charco de dias não passados gotejava debaixo do asfalto, mas nós não sabíamos. O medo é meu substantivo recorrente, de presença tão certa como o dia seguido da noite. Inveja antiga ainda me agita, refresca a memória, o leite dela respinga e uma gota atinge meus olhos. Ainda lhe sinto o sabor.

Tenho linhas nas mãos, cruzadas, paralelas e elas se desenham como vermes, ou traços indeléveis, por todo o meu corpo. Sentidos feitos em cacos me forçam a tirar conclusões débeis, enquanto bebo em pequenos goles uma chávena de café muito forte e, nesse instante escondo na palma da mão numa desesperada tentativa de agarrar a quentura que faça abalar o frio e é naqueles momentos quando troco as letras do alfabeto. A pala que esconde meu olhar impede a perfeição da mira e, por mais ágil, tudo se esfuma. Sinto o suor percorrendo meu corpo, frio, húmido. Desejo que tudo termine, no ali e agora, rezo e faço votos, numa descrença de quem apenas encontra o vazio e tem o silêncio como resposta. Eu sei e sinto o quanto a esperança é patética. Densa. Corruptora. E eu me entrego ao consolo porque no fim de toda a coisa me descubro fraco, abraçado à fragilidade do não acreditar. Aperto teu braço, de leve, receio de machucar só que, quando meus dedos escorregam descubro um vergão vermelho e meus olhos ficam tristes.

terça-feira, março 22, 2005

Vendaval

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Novamente perdi a hora.
Estou aqui já nem sei quanto tempo te olhando,
Olhando completamente ausente
Deste tempo presente...
Não sei de onde veio, nem porquê,
Pensando, suspirando, querendo!
O coração apertado no peito, querendo explodir...
Só querendo tua voz ouvir!
Voz que me leva as nuvens no silêncio da madrugada.
E eu não sei explicar...
O que me faz querer me entregar,
No teu carinho mergulhar,
E no teu porto tão seguro ficar!
É um sentimento muito forte que tenho guardado no peito,
Adormecido pelo tempo da tua ausência...
Gigante adormecido...
Anestesiado...
Congelado!
E agora quer sair de todo jeito...
E me aperta o peito,
e embaralha meus pensamentos...
Invade minha alma e me põe dos meus sentidos
É como um vento, que virou tempestade...
É um vento forte, apressado...
E vem de encontro à tormenta que carrego no peito agora...
E a ventania vem sem piedade, sem pudor e sem temor...
Vem arrebatando tudo!
Quebrando todas as janelas, arrancando velhas portas...
E esse vento exige o vendaval que está em mim!

sábado, março 19, 2005

Amarrar o Tempo

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Sei, sei que ando apressado, com toda aquela pressa de quem não sabe para onde vai. Mania minha. Mas, e se o tempo abalar? E se o céu partir o tempo, o vento fugir por entre as folhagens das árvores? Será que vão saber remendar? E corda? Vai ter corda para prender? E depois onde vamos encontrar gente para puxar? Será que vai ter gente?

Vou abalar da corrente salgada em discordância com o mar. Fazer de forte. Valente. Vou tentar ser maior que o mestre e, sem mesmo saber, vou tentar costurar os pedaços, feitos em cacos, que o tempo quebrar. E daí talvez aprenda valentia, cá de dentro, e não precise coser os farrapos, colar os cacos, talvez não haja louça, perca o passo, encontre o compasso. Talvez eu fique apenas com o tempo. Agarrado. Abraçado. Braços apertados ao tempo. Em silêncio.

Ainda não dormi. É que a gente não fica de bem e aí não conversa. Não fala e não transmite pensamentos e desejos. Aquelas vontades de partilhar. Ficamos naquela de dorme e no tenta dormir. E depois não dorme. Tu sabes. Aquela sonolência. Mas chega uma hora que dorme, esperança minha, embora contrariada. Se dormir vou perder, um tempo que se escapa nas brumas de uns olhos semicerrados.

Primeiro é um franzir de testa, a vontade de chorar que derrama do fundo mas não consegue e fica com aquela dor na garganta que quase não deixa respirar. Depois é aquela saudade que bate no peito, a raiva que cresce mas não encurta as distâncias. A falta do abraço quente de embalar, da cantiga sussurrada de um velho ventilador, da respiração no ouvido da gente. Aí ganha medo, do escuro, do vento nas vidraças, da ausência da respiração a seu lado. Levanta da cama, vai para a sala, acende a luz e espera pelo resgate. Ergue o queixo pois você não é disso. Volta para a cama, fecha os olhos e finge dormir. Deixa que a respiração pese. Teatro. Ressona. Pois que seja.

Para mim é impossível dormir e mesmo que eu tente, o que não faço, fazer as pazes não tem jeito e tu não me consolas do peso do dia da amanhã e perco o beijo, aquele que o tempo fez ruir, perdeu as amarras, e eu não esqueço. Penso nos compromissos, nos telefonemas, na agenda que a secretária teimosamente coloca à minha frente, nos nãos e sins que sou obrigado a enfrentar sem vontade. E aí sinto raiva. Raiva pela distância, pelo sentir, pelo desejo insatisfeito, pela vontade de ir. O resgate não chega e eu de luz acesa sentado no sofá olhando a parede e o quadro do qual decorei cada pincelada. Se for para a cama, vou ter de esperar em vão o momento de sentir no meu ombro a tua mão. Mas quando me abraçares de novo, aí, as cordas soltas darão o nó no tempo.

sexta-feira, março 18, 2005

A Concubina da Noite

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A luz do dia vai crescendo no seu desmaio
E o céu com a sua túnica de ondas de azuis,
Salpicado de brilhos e desejos.
A menina de lábios doces assiste a tudo em silêncio...
As flores exalam seus mais delicados perfumes,
Embaladas pelo chilreio dos pássaros,
Na impaciente busca por seus ninhos.
Todos, cada um no seu jeito, esperam por ela...
A Concubina da Noite!
Na noite quente de Agosto,
A brisa de verão que sopra do mar...
Vinda das areias de África
A lua cheia enche ainda mais os olhos dos amantes,
Que trocam olhares e segredos...
E desejos,
Sedentos um do outro...
E em silêncio a tudo observo embevecido,
Com a caneta em punho,
E derramo sobre o papel lágrimas,
Enquanto espero por ela.
E na hora marcada ela surge,
Linda como sempre,
Trazendo consigo sua frescura habitual...
De chá verde!
Seu silêncio é manso e sereno,
E o caminhar provocante...
A lua agora pertence a ela,
Enfeita-lhe os cabelos de fogo
Enquanto o verde da relva repousa agora nos seus olhos!

terça-feira, março 15, 2005

O Vicio dos Sentidos

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Nos dias em que chegava a casa, já com a passarada no seu chilreio de despedida, era sempre o mesmo, aquele olhar perdido no espaço e num tempo por descobrir, entre um não sei bem o quê hesitante e o esforço do compreensivo, enquanto que no entretanto, eu passara a noite percorrendo os meus caminhos e visitas de portas fechadas e janelas entreabertas. Aqui e além, procurando o esquecimento, o deixar para lá, num pequeno copo de uma bebida, repetida umas quantas vezes, procurando no fundo do vidro uma resposta que tardava. Depois vinham os prantos internos, derramando torrentes num desespero de silenciar dragões.

Aquele ritual repetido vezes sem conta, num contínuo rodopio, a olhar-me com os olhos muito para além de mim, penetrando o meu âmago, desventrando minhas fantasias, num querer reprimir meus anseios, com aquele seu perfume doce e fresco que sempre me fazia cerrar os olhos. Os gestos contidos no seu exagero, com o dedo virtuoso e imaginário em riste, apontando que a vida é muito mais do que uma colecção de regras, fórmulas e sentimentos calculados.

Não existe revelação do que essa, somos, e no verbo nos afirmamos, naquele é arrancado bem de dentro e atirado de chofre, para que fique ali, feito estátua, inerte e implacável, exigindo um amar sem questão, borrar muitas fronteiras e, se tal for os desejos dos deuses que dominam o nosso querer, pois que seja. Perecer no meio de uma tempestade bem violenta e que o vento liberte os cabelos embaraçados entre os galhos de muitas árvores antigas. Pode ser que, desta forma, de um jeito que o gesto determina, arremesse a tristeza para um lugar que não seja dentro.

Nos dias da minha chegada bem que eu podia perceber, naquele doce acordar, com toda a nitidez que a névoa permite, no fundo dos seus olhos, de um negrume incomparável, surgia ligeiras faíscas lépidas de querer entender o que está para além da carne, mas isso sempre esbarrava na impossibilidade de o fazer, pela simples prova de que somos apenas o que podemos ser: nós mesmos.

E ainda que as manchas se alarguem, se multipliquem e se espraiem por infinitos, ainda que muitas vezes os nortes percam o rumo e terminem sem direcção, quero e exijo que o meu caminhar, lado a lado, ou simplesmente tendo por companhia o vazio fátuo de um desejo que me obriguei a silenciar, siga por caminhos que, numa noite de tempestade, trilhei até à fronteira de uma vontade que viciou os meus sentidos.

sábado, março 12, 2005

A Tela

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Desviei os meus olhos da tela,
Branca, ofuscante
E pela janela do quarto descobri
Que não havia nem vento nem tempestade,
O céu azul profundo começava a cobrir o dia.
A brisa marinha atingia o meu rosto,
Como num acalento.
O mar feito suavidade quente,
Reflectia a beleza virginal das sereias.
E eu, em pensamento voei até lá,
Desci até a praia e meus pés tocaram as areias brancas,
Amante eterna daquele mar animoso.
Cedendo ao convite naquele tapete aveludado sentei-me,
Hipnotizado pelo som do mar e seu incansável vai e vem.
Cresceu em mim meus desejos de te ver,
Que iniciaram um aluvião de mariposas dentro de mim.
Era por ti que meu corpo clamava,
Num grito surdo à beira mar.
Na linha do horizonte vejo teu barco...
Mergulhei no mar e encontrei teus olhos,
À procura dos meus
No teu corpo feito barco entrei sem bater...
Encharcado pelo mar salgado,
Pelos ombros fluía uma túnica
Vestido com o brilho da lua e exalando o perfume do meu desejo.
Enquanto as estrelas fingiam dormir,
Tu me amaste...
E eu te amei, com o corpo e com a alma.
Preso em teus braços,
Nos teus olhos pude vislumbrar o mar, revolto de prazer...
E de um instante a outro, o serenar extasiado...
Completo... Satisfeito...
Em meus olhos a maré mansa...
Tranquila... Serena...
Deixei teu barco e num mergulho profundo alcancei a areia,
Olhei para trás mais uma vez,
Com um aceno discreto,
Refiz o caminho de volta à janela do meu quarto,
Olhei novamente a tela vazia a minha frente...
Continuei a escrever...
Tentando pintar as cores que escaparam

domingo, março 06, 2005

Por vezes

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Dá isso... uma fome, uma sede... um vazio.
A falta de algo que nunca existiu...
Aquele incerto do não-sei-quê.
A sensação de que nada faz sentido.
Uma vontade de não dizer nada,
de não fazer nada...
Todo o ar é pouco,
todo gosto é amargo e todas as cores são cinza.
É como estar numa prisão sem grades ou correntes,
É como ter um corpo sem alma,
Possuir asas mas não ter forças para voar
E ficar por aqui
Com fome
Com sede
Vazio

quarta-feira, março 02, 2005

O som do silêncio

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Gosto quando nasce a madrugada,
E posso ouvir o som do silêncio...
Abro as janelas e fico quieto, parado,
Simplesmente ouvindo
E distingo claramente a respiração da Terra,
O pulsar do coração do mundo.
É um som misterioso,
Tem algo de enigmático...
Aquele som do mundo!
Que dentro de mim faz eco
Som que me encanta,
Que me instiga,
Que me faz perguntas
Para as quais ainda não possuo respostas.
Mas que continuo nas buscas
É como se quisesse me dizer:
Decifra-me ou devoro-te...
E continuo, assim, quieto, parado,
Quase sem respirar...
Esperando...
Ouvindo...
O respirar da Terra,
O som do silêncio,
O som do mundo...

terça-feira, março 01, 2005

A busca

As chuvas correram naqueles últimos dias, coisa rara, e um gosto muito doce passeava entre minha imaginação e um céu por inventar. Não houve estrelas e nem uma só interrogação entre nossas mãos. É que, quando existe gota de paciência entre as nossas coxas, parece que todo o olhar, mesmo entre a hesitação e interrogação, conjura as fogueiras e as árvores completas, de ramos, de folhas e de chuva, num calor que o frio contraria.

Existe sim um sentir e mais do que um enternecer: uma queda entre teus gemidos, uma respiração forte por sobre os teus substantivos, os tais que nos viciam. Os dragões, eles sim, mais aliados que chamarizes de flecha e esquiva.

Então faço-me perceber no exacto momento em que olho nos teus olhos e no preguear a testa descubro a dúvida, sem saber o que tanto procuro. É esse aquele meu jeito de caçador. É o que está dentro de mim e além do aquém da vontade, mesmo entre a sombra e uma medida de lama. Entre todos os gritos, as entranhas e viscos e poesia, as linhas das mãos desenhadas.

Tanto o que existe muito para além da chuva dos últimos dias e aquele gosto minguante. E, embora o sentir não fale nada, pois seria o despertar do absurdo se falasse, sabia que jamais ocorreria de contar a quem fosse o segredo do que guardo entre meus olhos. Ele não há-de jamais se reputar a estranhos.

Vivo dentro do sonho e parte disso é verdade: não há fresta mais onde fixar, nem cor em meus advérbios. Sei que há sentir muito em todas essas paredes e além da chuva; vivo dentro de um desejo por inventar. Falta muita coisa, como devem ser essas medidas, mas há ainda muita coisa. Depois, e além disso, não posso descortinar. Afinal, que procuro eu?