domingo, outubro 30, 2005

Sinto, mais do que sei

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Sinto, mais do que sei, que as formas do meu rosto já não são do teu agrado, o mesmo que adoravas, dizias, acariciar, por onde a tua língua percorria docemente com uma lentidão arrepiante. Tudo porque nele, agora, está o desenho irregular de uma cicatriz no local que adoravas morder enquanto eu, com movimentos muito lentos, como tu gostavas, devagar, muito devagar, dizias num sussurro, eu entrava e permanecia dentro de ti, ao mesmo tempo que eu sentia a doce dor dos teus dentes e o meu sexo em movimentos na procura de dar e receber prazer. Tu fechavas os olhos e te oferecias, desejosa, ansiosa.

Sinto, mais do que sei, que os meus ombros, os mesmos onde gostavas deitar a cabeça, dolente e cheia de abandono, deixaram de ser o local do teu fascínio. Perderam o espaço de um passado recheado de saudades de todas as coisas que preencheram as nossas vidas. Aquelas pequenas, insignificantes mas que nos faziam sorrir, nos excitavam e nos fazia cair em qualquer lugar fazendo amor desenfreado e louco. Os meus olhos perderam brilho e força, aquela força voraz quando percorria o teu corpo e beijava o teu sorriso, talvez porque a cobiça tenho desfocado a retina. Culpa minha ou simplesmente a procura de um inexistente mais além.

Se o meu comportamento no passado era mais agradável na tua forma de encarar uma realidade que nos ultrapassa, nesse caso, sinto, mais do que sei, que já não nos pertencemos mais. Culpa tua porque permitiste que a distância nos separasse. Dizes que as saudades que sentes do tempo em que usava o cabelo comprido, rebelde, que mais significava o desejo de uma imagem da alma de artista, que nunca fui nem nunca serei. Olhas com desagrado a minha nuca agora a descoberto. Posso parecer duro, quem sabe com laivos de paranóia, só que, assim, fico com a sensação, que não vais aproximar-te demasiado de mim para me apunhalar pelas costas. Ou talvez não, exista apenas o desejo de apagar em definitivo a imagem que deixou de pertencer à moldura que decorava o colo dos teus desejos.

Sinto, mais do que sei, que te incomoda falar do passado. Tudo bem, brinquemos então com ele e se a palavra passado te afecta assim tanto, procuremos então um sinónimo que tenha o mesmo sabor, mas com uma imagem diferente. Afinal, é mais uma forma de nos enganarmos a nós próprios, como tantas vezes já o fizemos. Uma vez mais, que importância tem? Preferes o pretérito, imperfeito, talvez. Arcaico é possível que seja demasiado literário e que pouco ou nada signifique. Envelhecido. Porque não? Riscamos a palavra passado e usamos o envelhecido.

Ao escrever estas linhas, à minha frente um copo de sumo que por largos instantes esqueci de beber. Descobri que o grosso da fruta ficou concentrado em cima, mas sem se isolar. Bastou mexer e tudo se misturou de novo. Parvoíce minha, esquece a metáfora. Fuma lá esse teu último cigarro de haxixe, desta vez não partilhado e podes ir. Fecha a porta. Não gostaria que o frio gélido do Inverno entrasse.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Afinal, porque esperas…

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Vem de mansinho
Não tenhas pressa que o meu coração
Aguarda o instante em que despertes o meu sorriso
E aguce meus sentidos.
Agarre a vida como exemplo
Daquele amor por descobrir
Que é paixão e desejo em mistério,

Mesmo que não sejamos donos do tempo.
Deixa que abandone meu corpo em tuas mãos
Entre gemidos sufocados e arrepios
Dos teus lábios na minha pele ansiosa
Rogando por mais
Na espera do mais além

Deixa que eu abrace forte
E em teus braços alivie o fado
Nas margens do rio que nos revelam dor

E marque a equidistância até ao céu.
Esqueças o que procuras ao deitar teu corpo no meu
E nele encontre apenas amor demais.
Não interrogues o que nos acontece,
Não supliques pela realidade
Nas paredes de nossa fusão.
Vem sem culpa, sem medo do amanhã
Eu não vivo sem teu tremor,
Sem teu frémito e tua agonia
Sem teu desejo que prolifera no meu.

Sublime desfecho do sereno
Em meus olhos quando partes,
Com todas aquelas luzes
Que nos seguem sedentas

Ao retornar de mansinho para o nosso canto
Naquela cama redonda ou quadrada

Com uma vontade cada vez maior
De amar mais e sempre mais,
Sem culpas

Nem desculpas...
Vem de mansinho
Onde só cabemos os dois
Naquele tal cantinho

quarta-feira, outubro 19, 2005

Diário de uma alma errante (II)

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Noite 14.610

Podes acusar-me de tudo. Aceito. Sinto, mais do que sei, que muitas vezes, no silêncio do teu olhar, leio uma condenação de uma inexistente realidade. Mas, apesar de tudo eu respeito a tua carência, percorro o teu rosto com a ponta do dedo, gosto da barba mal feita, muito lento e muito ao de leve e com ele desenho galhos, desvios e ramificações, desenho círculos concêntricos e, finalmente, no canto da boca, quase a roçar os lábios, uma cruz. São gestos e movimentos, leves toques que a minha vontade ordena. Talvez signifique que eu sinta por ti algo um pouco parecido com o que chamam de amor. Ou então tudo não passa do sentir de uma pequena fúria que tenta quebrar a monotonia deste meu estático e cinza interior.

No espaço que mais uma vez nos recebeu, fito a luz fraca da vela que, num gesto inconsciente, resolvemos acender e no oferece o esboço dos nossos rostos. É nesse instante que venero a tua presença, que sorrio na penumbra e o meu coração rejubila por estares aqui mesmo apesar de eu não ter a certeza da tua presença. Gosto da penumbra, tu sabes, uma vez te confessei, com a cabeça repousada no teu regaço. Foi uma confissão a modos que despropositada. Mas tu sabes o quanto eu aprecio a penumbra, é aqui que me encontro, é aqui que encontro nós os dois. É quase como se estivesse de olhos semi-cerrados, um pé aqui e outro nos meus sonos mais soturnos, complexos. Com toda aquela complexidade de que, sem disso ter consciência, derramo nas páginas deste diário. Ora, também quem é que vai ler! Nem tu, que vasculhas todas as minhas gavetas à procura de sinais de traição, poderás encontrar este caderno de capas pretas. Apesar de estar a falar contigo nestas linhas, repara como ganhei coragem e o faço na primeira pessoa, jamais saberás o que digo, como, afinas, não sabes o que sinto por ti.

Na verdade só posso mesmo sentir a tua pele nesse teu universo opaco e oco, onde poucas vezes permites a entrada. Só posso vislumbrar as tuas células, essas que se misturam e se separam, como se fossem uma colcha de retalhos, tentando proteger-me do frio, esse frio que permanece, mesmo nas noites mais quentes, fina película de quentura. Mas tu, por gozo, por obrigação ou porque nada mais tens que fazer, abrigas-me nos teus braços e me proteges deste meu Inverno perpétuo. Porque teimas em me escudar de um mundo que se despedaça e desaba nas minhas costas? Descansa, não precisas responder. Na verdade, nem perguntei.

As horas vão passando, o sono não vem, sinal que o tempo não pára. Aqui, neste silêncio, apenas o arranhar da caneta no papel, lá fora, a fruta apodrece, cai e se desfaz no chão duro e poeirento. Gente que passa e não olha. Os esfomeados estão em outro lugar. E esta incoerência que permanece. Mas os temas. Esses, não mudam. Sabes que nada imploro, mas agora peço que não te assustes com a minha franqueza, tenho medo, tu não sabes, nunca o confessei, mas tenho medo de te perder. E isto é apenas o que posso dizer perante a minha impotência. Procuro agarrar, com as forças de todos os meus sentires, as rédeas de cada sílaba que me escapa em cada respirar, destruir todas as palavras erradas, e tantas elas são, amarrar com fios de aço todas as minhas verdades que não disse e as mentiras que omiti, minhas misérias, minhas loucuras e toda esta imensa solidão que dói e que muitas vezes me atira para uns braços estranhos e uma cama desconhecida. Dou, mais do que procuro, prazeres de uns quantos instantes. Momento em que a solidão é mais suave e eu fecho os olhos neste meu engano.

Não tarda aí os primeiros raiares do dia e o sono, esse, viaja por lugares distantes. Que seja. Sei que não mereces encontrar em mim mais temor, desejos de terra firme e a segurança de uma árvore milenar e nunca uma jangada perdida em mares de horizontes desconhecidos. Sei que tu sentes a minha alegria nervosa quando te aproximas de mim, quando me quedo nos teus braços. Deixo que entres no meu barco, pegues nos remos e marques o rumo. De olhos fechados deixo-me embalar nas tuas vontades que, em desespero, procuro que sejam também as minhas. Estremeço quando acaricias os meus seios, descoberto que foi o meu segredo, e em teus braços sigo viagem, com destino a um porto que nunca encontro, Não, não por culpa tua. Traumas de um passado que tento olvidar. Mas esquece! Deixa que meus braços apertem o teu corpo, arranhe as tuas costas, e receba em mim o explodir de uma nostalgia. É o mar se apossando da minha vontade num esforço de me distrair de mim, numa tentativa, mais uma, de encontrar a ponta da corda para me prender aqui, na ancorada e, assim, de me proteger de mim.

As ondas que levam o nosso barco exigem a paga da dor e para aportar a um porto seguro custa essa dor pequena e longa que aniquila o coração, que o estrangula. Estupro as minhas linhas, violento meu corpo, atormento minha mente. Em todo este silêncio, ouve o meu grito. Quero mais do que tu me podes dar, mas que feliz fico, com o pouco que me ofereces. Perdoa o desconexo das palavras e o complexo das frases, mas é assim que estas páginas do diário serão escritas e nada farei de diferente.

Sou a droga e o vício na minha própria droga. Corrompo meu sangue, destruo a minha mente, nado furiosamente contra a corrente, fico cega com a com a pressão e me emociono com toda essa fragilidade. Deixa que as minhas lágrimas percorram os caminhos que sonhamos e me comova com a nossa carência, a tua porque gritas em silêncio, a minha que me refugio nos gritos. Esta nossa ausência que emoldura as paredes vazias que nos fecham e aprisionam. Desejava fugir de mim, queria fugir de ti.

Da outra sala ouço uma música de som bafiento, as minhas pálpebras pesam luto, lamentam o meu precoce velório. Que demora tanto, segundos transformados em séculos quando aguardamos em solidão. Sinto a vontade louca de te abraçar com uma força que não tenho, eu te amo, com um amor que eu nem sei se posso dar a alguém. Terei coragem e renúncia para tal? Ouve meu grito e fica comigo, segura o meu ramo de flores murchas, agarra as minhas mãos e se for essa a tua vontade, beija-me. Não me deixes escapar mais uma vez de ti. Mesmo que tenhas de me condenar.

quinta-feira, outubro 13, 2005

Diário de uma alma errante

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Noite 14.601

Apesar de todo um passado de páginas escritas com raiva, num caderno de capas pretas e folhas com linhas, esquecendo muitas vezes de registar a data e o momento, traços de alma e sentidos que, quase sempre inconscientemente, desenham palavras em frases num desesperado esforço de se traduzirem. A despeito de tudo o que possui e que acaba sempre por deixar escapar por entre os dedos. De tudo o que tem vivido e do muito que desejou viver. Do balançar na ténue linha entre o certo que a sua consciência ordena e o errado que os outros declaram. Aquela vontade interior de afastar o seu próprio sofrer do sofrimento alheio, de criar um mundo que fosse só dela, impenetrável, longínquo. Era sua obrigação responsabilizar-se por todas as irresponsabilidades de loucuras cometidas e de muitas que a falta de tempo não deixou ainda cometer. Mas um dia ela as fará, disso tem a certeza. Talvez até num amanhã muito próximo. Se é sua a vontade de escrever todas as palavras com sangue, pois que assim seja, mas que seja apenas o dela.

As humilhações não se perseguem nem se conquistam, porque há sempre alguém a nos oferecer com um sorriso nos lábios. As frustrações, essas nos invadem, nos dominam e nos aniquilam. Depois vem o bálsamo numa garrafa. Enchemos o copo, bebemos, tossimos e fechamos os olhos e voltamos a encher o copo. Vezes e vezes até a garrafa ficar vazia e com ela o respeito próprio e com os outros. Uma questão de entorpecer os sentidos, vomitar nas noites de lua cheia, lavar as cuecas de renda compradas num momento de boas intenções e alguma esperança e correr pelos prados e inventar um deus. Num desespero sem causa roeu as unhas, esborratou a pintura dos olhos com traços negros disformes se espraiando pelo rosto e de nada adiantou o ter derramado lágrimas. No charco que encontrou no seu passeio errante, atirou pedras, nas flores que uma primavera tardia fez desabrochar cuspiu vergonhas, numa viela escura e deserta vomitou o jantar. Na sua imagem reflectida no espelho viu definido, de cores fora do arco-íris, o nojo de todos. Desejou parar de fumar enquanto acendia um novo cigarro com o outro, que esmagou no cinzeiro já cheio, Rezou uma oração não decorada para que lhe fosse concedida a dádiva de existir sem se magoar e afastar de si a vontade de machucar outro qualquer. Num piscar de olhos, um ligeiro estremecer do corpo, descobriu que tinha desistido. Mais uma vez.

Confessou a si própria não ser muita dada a congeminações filosóficas, por desgosto seu, pois não apreciava muito a sua faceta demasiado pragmática. Sensível, romântica, dizia-se de si própria. Justificava assim os tropeções da vida. Deu-se a interrogar-se sobre se as delícias do prazer compensavam as dores do sofrimento, tenha ele a forma que tiver. Quadrado, redondo ou simplesmente obtuso. Sentia que o prazer tinha um preço alto, talvez demasiado, razão pela qual muita gente não se podia dar ao luxo de o possuir. Depois o prazer de um pode ser a dor de um outro. E, naquele instante, enquanto olhava o velho casario através da janela daquele terceiro andar, congeminava, num esvoaçar de pensamentos muito para além da sua vontade, se o prazer não seria dor. Sofrer é mais fluido do que o sangue nas veias.

Quando rodopiava a caneta entre os dedos pensava se seria a força de vontade ou a arrogância dos outros que a empurravam para se desfazer de tanta prolixidade, daquele sentimento insano de se desfazer de si mesma. Possivelmente tarefa fácil e pouca diferença fazia. Sem se aperceber a caneta deslizava com algum frenesim pelas linhas das folhas do caderno de capas pretas, não fosse alguma palavra lhe escapar do pensamento e tudo perder o sentido.

Por momentos pensou desistir, rasgar as folhas, queimar o caderno, esquecer o diário, secar as lágrimas, apagar o pensamento, tomar banho, mudar o penso no seu último dia de menstruação, cada vez mais espaçado, menopausa precoce, dissera o médico, mas descobriu que privar-se de tudo é uma tarefa árdua. E ficou-se.

Penteava com os dedos o cabelo da boneca. Tinha quase tantos anos como ela e era a única coisa que guardara da sua infância. O facto de a ter guardado todos aqueles anos, fora mais por um simples acidente do acaso, do que uma afeição especial. Foram muitas as vezes que se interrogara porque continuava a guardar aquela boneca. Fechou os olhos e, num repente, arrancou a cabeça da boneca. Achou estranho associar na sua mente o gozo intenso de viver perigosamente e o arrancar a cabeça de uma boneca de infância. Incontroláveis, as lágrimas corriam-lhe pelas faces. E chorou, sem culpa e sem pecado.

Olhou a sala, decorou os móveis, leu os títulos dos livros um pouco desarrumados na estante em frente, admirou a reprodução de um quadro de Kandinsky, oferecido já não se recorda por quem e observou o reflexo da sua imagem no vidro da janela. Com gestos lentos despiu-se de todo e qualquer pudor. Nua, percorreu o seu corpo com as mãos. Há quanto tempo o não sentia? Esquecera por completo. Recentes, outras mãos o percorreram, um pouco frias, apressadas, distantes. Assim, nua de preconceitos, despida de sentimentos, saiu pelas ruas da cidade cujo nome se esforçara a atirar para o olvido. Partiu garrafas vazias e as mãos ficaram cobertas de sangue. Levantou em riste atacando um inimigo imaginário. Desferiu golpes para a esquerda e para a direita. Sentiu dentro de si o gozo, de novo, de viver perigosamente. Semeou misérias e pesares, colheu silêncios e raivas. Foi perseguida e gritou. Foi algemada e chorou. Foi enjaulada e cerrou os olhos. Os animais, os génios e os lúcidos sempre terminam presos em alguma masmorra. Uma prisão de grades interiores.

Porque se achou merecedora, ofereceu a si própria uma réstia de inocência e permitiu que se alastrasse pelo corpo, mas descobriu que era mais uma luz perigosa que mais assombra do que ilumina. Ao alcance dos seus braços, um amor numa outra paragem, uma promessa, um desejo, mas muito principalmente uma esperança. Mas um dia, por uns momentos de ilusão de um prazer procurado numa cama desconhecida, ficou perante uns farrapos de angústia e uma sujidade que, dias depois, ainda infestava seu corpo. E a esperança se esfumou nos ventos da perplexidade. Perdeu um amanhã, dissipou um amor que crescia e se afundou, pois até o amigo se perdeu numa noite de trovoada. Existir exige mais do que se por oferecer e a vida é um peso que verga os ombros. E o perigo vai crescendo e jamais poderá livrar-se de si mesma. Perde-se a vontade e ela sente o perigo de estar só, incapaz de construir caminhos para que a visitem na sua ilha particular. Uma ilha rodeada de angústias, temores e falsos prazeres.

Para além de todo o medo que ela sente de tudo e de todos, que não mais confia, por falta de coragem, por falta de vontade, por sua culpa. Pensa que talvez surja alguém com vontade de a salvar, não sabe do quê ou de quem, a não ser de si própria e isso ninguém vai conseguir. Deseja, em desespero, nunca finalizar um pensamento porque sabe que é exactamente aí que reside todo o perigo.

E agora que a noite me acolhe, tento descobrir porque escrevo na terceira pessoa como se fosse uma desconhecida de mim mesma.

quinta-feira, outubro 06, 2005

O Homem Invisivel

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Passara uma semana desde que Diogo festejara o seu aniversário na solidão do seu apartamento. Durante alguns instantes, fugazes no tempo, sentira uma espécie de branco, um vazio de memória, sobre quantos anos fazia. Fez algumas contas e chegou ao 43. Naquele dia celebrava 43 anos de idade. Mais um aniversário que não festejava. Quantos foram já? Era mais fácil fazer as contas ao contrário, tão poucos eles foram, em toda a sua vida. Na verdade não tinha qualquer importância para si. Um dia como outro qualquer, um traço na folha de calendário. Depois, não tinha ninguém com quem partilhar.

Lembrava-se que, em todos aqueles anos, apenas festejara duas, não, na verdade foram três. Dias quando criança, ambas oferta de uns padrinhos com algumas posses. A primeira quando entrara para a escola. Um pequeno bolo, mais farinha do que açúcar, e uma vela. A segunda quando terminou a primária. Um bolo comprado na ocasião e a vela foi esquecida. Depois disso os padrinhos foram viver para um outro lugar e esqueceram o afilhado.

A terceira, já adulto, decorrera no seu primeiro ano de empresa. Uma tradição instituída desde o inicio da empresa. Cada secção tinha uma lista do pessoal com as datas de aniversário. Depois da hora do expediente reuniam-se todos, abriam uma garrafa de espumante, que a chefia tinha comprado por atacado numa feira de vinhos e partiam um bolo que a secretária se encarregara de comprar, com a participação de todos. No ano seguinte, por uma qualquer razão, o dia do seu aniversário foi esquecido, ganhou hábito e assim se manteve em todos os anos.

Com mais cinco irmãos. Sem grandes possibilidades para festas, era fácil, conveniente até, os pais esquecerem-se dos aniversários dos filhos. Como o deles próprios, que nisso não faziam distinção. Os tempos não eram de festanças. Trabalhar para o pão, pagar o aluguer e tudo o resto eram luxos. Porque por muito que a gente pense, na merda desta terra há mais gente pobre do que rica.

Não entendia porque é que, naquela noite, as imagens da sua infância corriam frente aos seus olhos. Não se recordava de alguma vez isso ter acontecido. Há já muito tempo que se deixara de nostalgias. Vivia o seu dia a dia, sem nunca pensar no ontem e nem desejar o amanhã.

Pedira pelo telefone um jantar chinês. Normalmente confeccionava as suas refeições e apreciava aqueles momentos que passava na cozinha. Naquela noite resolvera oferecer a si próprio um pequeno luxo. Não apreciava comer em restaurantes. Preferia a quietude do seu apartamento ao bulício de uma sala cheia de gente falando alto, para mostrar aos outros que estavam ali. Abrira uma garrafa de vinho que há meses, num momento de loucura, comprara numa feira de vinhos, e logo ele que não era apreciador de vinhos. Guardara aquela garrafa para um momento especial, que nunca chegara. A intenção era partilhar com alguém. Sempre achou que não era bom beber sozinho. Naquela noite considerou que os seus 43 anos, era o pretexto certo para abrir a garrafa.

Dois meses antes, ele e mais sete colegas foram chamados à administração e, numa cerimónia simples e demasiado sem sentido, porque nenhum dos presentes sentia qualquer autenticidade da cena. Todos estavam presentes porque eram obrigados e tinham de sorrir para disfarçar o grande frete que tudo aquilo era. Os setes funcionários foram felicitados pelos 15 anos de empresa e oferecido a cada um, para marcar a efeméride, uma carteira em pele, com as iniciais do nome em ouro. Cada director proferiu algumas palavras de elogia e simpatia. Circunstanciais, vazias e decoradas, por tantas vezes repetidas, Apenas os nomes mudavam. Quando chegou a sua vez, o seu chefe gaguejou e não soube o que dizer. Não o conhecia o suficiente, apesar de todos aqueles anos. Acabara por atirar com uns quantos lugares comuns, que em nada o comprometiam, mas também nada diziam. Uma intervenção de palavras vazias que tanto podia servir para ele, como para a mulher da limpeza. Diogo tinha perfeita consciência que era um funcionário eficiente, um profissional responsável, mas invisível. Há muito que deixara de lutar contra essa invisibilidade, se é que alguma vez o tentara de verdade. Executava o seu trabalho em silêncio na solidão da sua secretária. Sempre que o serviço exigia ficava depois da hora. Não tinha ninguém à espera, nenhum compromisso e essa disponibilidade era muitas vezes aproveitada pelos colegas. Não se queixava. Quando saia dentro do horário, arrumava cuidadosamente os papéis, limpava com a mão um inexistente resquício de pó da secretária, atirava um tímido até amanhã, a que ninguém se dava ao cuidado de responder, e abandonava o edifício de dez andares, pelo elevador de serviço.

Deambulava sem direcção pelas ruas da baixa, parava numa ou noutra montra, sem prestar grande atenção e seguia para casa. Assim eram todos os seus dias. Até que um dia tudo mudou. Exactamente dois meses antes do seu aniversário. Para ser mais preciso no dia seguinte em que recebera a carteira.

Na companhia do chefe, a Laura fora apresentada a todos os funcionários da secção, como uma nova colega. Chegara junto do Diogo. Este levantou-se num gesto de cortesia, estendeu a mão e ergueu os olhos. Foi como se tivesse recebido uma descarga eléctrica. Nunca, até então, tivera aquela sensação.

De mulheres conhecia pouco. Umas breves ligações, sem história nem consequências, na adolescência, originadas por um ou outro trabalho de grupo que os afazeres escolares exigiam e a falta de tempo de trabalhador estudante obrigava. Dividia o seu tempo entre o trabalho e os estudos à noite. Na faculdade, tinha acontecido um breve caso com uma colega de curso e que lhe despertara algum sentimento, mas mais uma vez a sua invisibilidade fora mais forte e ela nem se dera conta da sua existência. De tempos a tempos, quando as suas necessidades eram mais exigentes, comprava uma hora de prazer, não havia conversas nem sentimentos e durante largos meses não pensava mais no assunto. Momentos havia que recorria a um satisfazer solitário.

Passara todo o dia sem conseguir se concentrar no trabalho o que nele nunca tinha acontecido. A sua vontade era levantar a cabeça e olhar para a nova colega. Divorciada, 38 anos, mãe de uma filha de 4 anos. Aquele primeiro dia fora um sofrimento. Parecia que as horas não passavam, que os ponteiros do relógio, colocado na parede em frente, se mantinham inertes. Queria sair, tinha urgência em respirar.

Todos os dias, Diogo bebia cada movimento da Laura, pulsava a cada olhar que se cruzava. Aprendeu a admirar as suas formas definidas, os seus traços, as suas curvas, o seu jeito leve de andar. Cada tecla que tocava, cada número que surgia no ecran, cada fórmula que construía, cada equação que resolvia, tudo se conjugava na construção de um sonho. Isso era Laura, um sonho. Ele bem o sabia. Jamais poderia tocá-la, jamais poderia senti-la nos seus braços, possui-la como mulher e amante, um amor que ultrapassava as fronteiras do sublime.

O tempo ía passando e Diogo aprendeu uma nova lição, a se conformar. Saciava seus desejos numa visão pura e simples, o seu perfume, a melodia da sua voz. E Diogo de solitário passou a triste. Os seus temores gritavam-lhe que nunca iria ter a coragem de falar do que sentia, nem a ela nem a ninguém. Observava os risos, as conversas soltas, e deliciava-se quando a ouvia rir.

Trocaram algumas palavras. Laura sempre o recebia com um sorriso e uma palavra simpática. Gostava dele e lamentava a sua timidez. Uma ocasião pensou em o convidar para um bebida no fim do trabalho; afinal era uma mulher livre, mas Diogo era um homem fugidio e ela ainda não se decidira. Tinha algum receio de receber uma recusa e sentir-se desconfortável por isso.

No dia seguinte ao ter festejado o seu aniversário na solidão do seu apartamento, Diogo, sentado à sua secretária, viu a Laura entrar na sala onde se encontrava a máquina de fotocópias. Passara junto de si, sorriu-lhe e deixou no ar o seu perfume. Ele fechou os olhos, inebriado. Durante alguns instantes não conseguiu respirar. Um pensamento, um desejo, um impulso, ou então algo que de repente resolvei desabrochar. Olhou em volta. Todos estavam absortos no trabalho. Mas mesmo que não estivessem ele sabia que, fizesse ele o que fizesse, seria simplesmente ignorado. A sua invisibilidade era permanente e disso ele tinha perfeita consciência. Sentiu os pulmões inundados de um a forma agressiva, pelo perfume de Laura. O seu corpo estremeceu, as suas mãos suavam, o coração batia descompassadamente. Os movimentos deixaram de ser comandados pelo cérebro e dentro de si nas céu uma vontade incontrolável de sair dali a correr, antes que morra ou se mate de amor. Possuído por um desejo infinitamente maior que ele, Diogo levantou-se e, com passos firmes e determinados, dirigiu-se à pequena sala. O cérebro gritava para que parasse e regressasse à solidão da sua secretária. Recusou ouvir. Entrou e ficou olhando-a, como se de repente, não soubesse como tinha ido ali parar. Laura levantou os olhos e sorriu. Ela era a única que sempre sorria para ele. Diogo deu um passo em frente, estendeu os braços e, se alguma resistência houvera, ficou subjugada na ternura daquele abraço e afogada na profundidade naquele beijo. Beijou-a como nunca tinha beijado na sua vida. Nem sequer em sonhos. Tanto desespero naquele acto. Laura não se moveu. Não resistiu. Foi como se também esperasse aquele momento. Como se o desejasse. Como se tivesse a certeza que ía acontecer. Inconsciente fechou os olhos e deixou-se vogar na onda enorme daquela ternura. Não soube se correspondeu ao beijo se não, mas isso, naquele instante, pouco importava. Uma coisa ela sentiu, havia desespero e amor naquele beijo e por momentos viveu dentro de si uma intensa felicidade. Inexplicável mas verdadeira.

Num impulso, ele se afastou, pediu perdão com as lágrimas correndo pelas faces e saíu correndo. Parou junto à secretária. Olhou em volta. Ninguém se apercebia da sua presença. Continuava a ser um homem invisível. Curvou-se um pouco sobre a secretária e, mais cuidadosamente do que o habitual, arrumou em pequenos montes, todos os papeis. Encostou a cadeira de rodas junto à secretária. Voltou a olhar em redor. Depois, num passo firme e decidido, encaminhou-se para a porta de vidro que dava acesso a uma pequena varanda sobranceira ao pátio principal. A sua secção situava-se no oitavo andar. Sem olhar para atrás lançou-se no vazio. Soltou um grito de desespero e depois um baque seco. Todos levantaram os olhos. Levou alguns instantes até que alguém conseguisse perceber o que se tinha passado. Apontaram para a porta aberta. Diogo jazia morto no chão do pátio principal, a poucos metros dos carros estacionados.

Laura, enquanto isso, continuava a tirar fotocópias. Na sua mente um turbilhão de pensamentos. Estranhamente admirava a coragem, o impulso e o frémito daquele beijo. Todas aquelas sensações despertadas. Será que estava a enlouquecer? Ou estaria sendo feliz pela primeira vez? Cedeu à vontade louca de correr atrás dele, pedir desculpas pelo medo que sentira. Ele precisava de saber que não lhe era indiferente. Tantas vezes tivera vontade de lhe falar, meter conversa, fazer convite, mas ele era uma pessoa tão fechada, tão arredia.

Regressou à sala e viu o alvoroço. Num relance sentiu mais do que descobriu o que se passara.

Sem falar com ninguém abandonou o edifício e fechou-se em casa. Deitou-se na cama e ali ficou dias esquecidos. Estava certa que Diogo a qualquer instante entraria pela porta do seu quarto e lhe roubaria, com um beijo, a sua própria vida. E a partir desse momento deixaria de ser um homem invisível.

domingo, outubro 02, 2005

Inerte

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Basta apenas uma só flor, de qualquer perfume que nos inebria e se vira para um horizonte por descobrir. No ar, no mar de um oceano por navegar, na forte emoção de viver tempestade e de um olhar de um jamais de mãos erguidas num alcançar perdido. Foi o que afirmou o filósofo, bretão, estranho, pulsando na ponta da língua o muito que ficou por dizer. Vá, conta-me o que te mata, o que destrói o teu sentir. Diz-me o que comanda o teu coração. Esse que pulsa em teu peito, vestido de vermelho a martelar, incessante, a suprimir todos os medos, os que ficam e os que se perdem na areia molhada de uma praia deserta. Certeira, directa à espinha, enquanto grita verde a canção do nunca mais e ficas. Ali. Inerte. Paralítica. Na procura de uma cadeira de rodas. Perdida no caminhar.