segunda-feira, junho 27, 2005

MULHER, QUE BAILAS ?

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Mulher que bailas? Mulher que rodopias sem par, que bailas tu? Que dança é a tua que enche a tua alma e agita o teu corpo? Que dança é a tua para que a imagem se eleve e se transforme numa ilusão? Como se chama o teu bailado? Não, tu não sabes, porque no sentir está o nome que não queres definir. Tenta mulher, pergunta à prostituta, pergunta à virgem. Elas dizem-te como se chama o teu bailado. Uma na carne o sente, a outra no pensamento o deseja.

Dança a prostituta, sem música sem melodia, sem escolher o par. Seu corpo de tempo incontáveis não se agita, fica inerte. Livro de páginas sujas, letras indecifráveis, escrito de raiva e nojo. Seu palco é formado de farrapos de cores desbotadas há muito, por corpos suados. Seu bailado é triste, é negro, é noite. Música de notas surdas, roucas. Melodia inexistente em vida estéril.

Dança a virgem em tule branco, imaculado. Seus passos são vacilantes, são trémulos. Seus olhos receosos olham em volta e fixam a branca melodia que a envolve. Com a suavidade de uma pena agitada por uma brisa suave duma primavera a florir, seu corpo se movimenta, seus braços se estendem em súplica numa oração ao dó e ao si. Notas que a possuem em divino êxtase.

Tu, mulher, continuas o teu bailado impossível num palco de tábuas carcomidas e naufragadas num mar há muito esquecido, recebendo de quando em vez a esmola de um pensamento tardio, o derrame de um pouco de tinta negra no teu ventre inchado de tanta miséria ancestral. Uma lágrima atirada nesse teu mar de sonhos impossíveis. Tu, que caminhas curvada, de olhos vazios de ver, cansaço e insónia.

O puto que chora cansado de ser, fome enganada de chucha encontrada perdida no desejo de ser e não é. Um raio te parta!, atirado entre dentes sem sentir. Ah, puta de vida que já nem sei donde venho! Não sabes, mulher, e muito menos para onde vais.

Procuras na despensa vazia uma gota de leite, uma côdea de pão e espreitas pela janela na esperança de veres um pouco de sol. Uma esperança perdida pois chove e tu sabes que não podes fugir dela.

É mais uma que os teus ossos vão absorver até à medula. Olhas em volta à procura do chapéu, quando sabes que ele se desfez na última vez em que, lá fora, a chuva e o vento firmaram um pacto.
Atiras-te para a rua e marchas apressada de encontro marcado à pequena máquina feita relógio que, com um clic, te amarra horas seguidas a um trabalho que não gostas e nada te diz.

Ali estás e ficas, enjoada, curvada, desfiando, num trémulo vomitado, o rosário dos minutos sem fim. Como máquina sem vontade esperas o silvo agudo que, ferindo-te os tímpanos, diga que por agora podes ir, oferta de uma falsa liberdade que te faz sorrir com tristeza.

E tu vais, sem tempo sequer para um suspiro de alívio, retorno cansado às tábuas que esperam, a mesa vazia, a voz que não ouves, ao choro do puto. Caminhas e falas contigo; um quilo de arroz, um litro de azeite, uma peça de fruta. Contas e recontas, equações do primeiro ao último grau, sabendo que não adianta a prova real.. No fundo da mala que transportas despreocupada e cheia de coisas inúteis, descobres, mais uma vez, que o erro não está nas contas.

Chove menos e aproveitas a aberta apressando o passo. Sentes os pés húmidos e pensas nos sapatos que tens de comprar. Lembras-te então do que o chefe hoje te disse: Meia hora atrasada, desconto meio dia. Raio de vida! Foi o miúdo que chorou, agarrado às saias, à entrada da creche. Um pontita de febre, talvez. Meio dia! Lá se vão os sapatos que namoraste na montra há uns meses atrás.

Entras na loja e compras menos de metade daquilo que precisas. Passas pelo talho e olhas, gulosa, a carne exposta cujo sabor há muito esqueceste. Resignada, continuas o teu caminho mais curvada pelo peso da frustração e da tristeza, pensando nas longas horas que ainda te separam do colchão abandono do teu corpo esgotado.

Já em frente do fogão fazes uns segundos de pausa, preparando a mente e a vontade para, num passe de mágica, tantas e tantas vezes repetido, transformares o quase nada que tens no fundo do saco de plástico naquilo que tu, com um sorriso interior de sarcasmo, irás chamar de jantar. Momentos depois, sentada à mesa ouves um resmungado; outra vez esta merda!, que não ligas. De cabeça baixa mastigas a comida que metes na boca com dificuldade, sem vontade e sem sabor. Apesar da fome aquilo não entra.

Do tanque da roupa, barrela apressada, ao ferro de engomar, da cama desfeita, por falta de tempo, aos remendos nos trapos, tu consomes as derradeiras forças no resto das horas em trágico esforço.

Ouves um, vem mulher!, muito longe, de um outro mundo e, curvada, vais. Te abres, mordendo os lábios num último esforço de não sucumbires à força do sono e do cansaço. Por fim acaba e o corpo deixa-se cair a teu lado e logo adormece, soltando um suspiro que não sabes se de prazer ou de cansaço. Se ao menos a criança dormisse toda a noite, vais pensando, fitando as sombras escuras do tecto, ansiosa pelo suspiro final. Depois, quando ensaias os primeiros voos num sono que queres teu, chora a criança no berço ao lado. No teu outro lado um ressonar profundo faz compasso. Muito rápido, pensas se terás sempre forças. Numa voz de sono sussurras um dorme meu menino, enquanto lhe metes na boca a chucha caída. Tentas, com ternura, que para isso tens sempre tempo e força, depositá-la no berço, mas ela solta as goelas. Já dormiu o primeiro sono e agora quer brincadeira, uma migalha de amor.

Com a língua atira a chucha, sorri com aquele sorriso que te desfaz de amor. A teu lado um corpo se mexe, no teu colo um choro a reclamar atenção. Embalas lentamente, dizes palavras desconexas e procuras manter os olhos abertos. Tão depressa o puto não vai dormir!

2 comentários:

SL disse...

«Tu, mulher, continuas o teu bailado impossível num palco de tábuas carcomidas e naufragadas num mar há muito esquecido(...)»
Isto é simplesmente genial!
Jinhos...amei essa tua mulher, como tantas que conheço, que dança a vida...

Cris disse...

Sempre um realismo extraordinário, trabalhado a mãos de mestre. É magia que transborda das pontas dos teus dedos...

Tinha saudades de te ler devagarinho, saboreando cada palavra q nos ofereces.

Um beijinho imenso