terça-feira, junho 14, 2005

Passos perdidos

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Acho que perdi no tempo, não que isso tenha importância, a última vez que entrei num bar. Desta vez os passos levaram-me para um. Vou sempre para onde os passos me levam. Já entrei em igrejas, em praias desertas, em campos por desbravar, tascos fedorentos de fritos e vinho, casas de putas. Cá por mim vou sempre por onde os passos me levam. Desta vez levaram-me a um bar. Estes meus passos há tanto tempo parados, inertes, esquecidos de caminhar.

Entrei no bar, cujo nome não retive. Pouco importa, não tenciono lá voltar. Dez minutos depois estava farto. Nuvem de fumo que me fez arder os olhos, a mim, que levei porrada de criar bicho para deixar o vício. Casa velha, pequena, minúscula, sentia um cotovelo enfiado nos rins e o pé que levantei já não o consegui colocar no chão outra vez. O espaço procura ter pinta numa estafada decoração pretensamente jovem e barulhenta. O pessoal gritava por bebidas cujos nomes desconheço e alguns até que tinham a ver com sexo e coisas assim. Em que século descambei eu?

Ignorei o olhar desaprovador da loirinha delambida de decote até ao umbigo, quando lhe pedi uma bebida sem álcool. De copo na mão, olhei em volta e tentei compreender as conversas aos berros, na tentativa frustrada de ultrapassar os decibéis da música. Desisti. Mas sorri, satisfeito, pois tinha conseguido colocar o pé no chão e reconquistado o equilíbrio.

Já que não consigo entender o que dizem, vou olhando em volta, agora que os olhos se habituaram ao escuro. Coisa comum, toda a gente faz um esforço danado para se divertir, como se isso fosse uma obrigação, coisa paga, no acto da entrega, como a bebida. Não descobri sorrisos, só risos. Tenho tentação de dizer antro, mas não, não sou tão velho assim. Tanta gente esforçada, com montanhas de horas de preparação no visual, pretensamente desajeitado, cabelos com brilho de bastidores, alças de soutien numa oferta deselegante de mau gosto. A moça estava ao meu lado e falava com alguém invisível. Acho que se esforçava para ser uma qualquer, bolacha grossa e sem recheio e quase conseguia ser pedante, se pedantismo significasse esforço de inteligência. Queria parecer-se com qualquer coisa, mas não aquilo que estava sendo. Vestia uma saia do tipo ameaça que vai cair, de pregas, as cuecas de fio dental eram vermelhas que combinavam na perfeição com o soutien preto. Que merda de projector que girava de um lado para o outro e que me fazia doer os olhos e ver as coisas aos farrapos! Batom vermelho puta. Porquê? Era linda. Linda mesmo. Não precisava.

Ria, mas só de boca. Os olhos não. Esses pareciam de mulher vivida no fim de carreira, mais do dobro de vinte anos gratuitos. Do meu canto espalmado, invisível de copo na mão, não consegui vislumbrar se sozinha ou acompanhada. Os lábios mexiam. Se mexiam, falava e pouco importa se para si se para os outros. Para mim servia pois a ouvia.

Que faço eu aqui no meio de toda esta gente? Para este copo ainda deu, mas não vai haver próximo. Não tenho dinheiro para o álcool, nem para o gajo por via do pó, de pedra nem pensar. Melhor é ir para casa, óbvio que a pé. E vou ter de caminhar como se pisasse ovos para não gastar a porra dos saltos. Quantos foram para os comprar? Um, mas demorado e nada sobrou pois foram caros. Mas que são lindos, lá isso são. Vou ou fico? Vou tentar a boleia, defendo os sapatos em troca de um pequeno favor sexual, sem a mínima possibilidade de satisfação. Tenho de voltar para casa, limpar os sapatos, arrancar esta roupa que há umas horas achei bestial, fazer desaparecer este batom barato, deitar-me nua no chão frio, descansar as nádegas no soalho, sentir o cheiro forte de pinho e cera, deixar o gato lamber as mamas até morder e correr fiozinhos de sangue e acender um cigarro sem filtro. Ligar o rádio e procurar uma estação que me ofereça uma canção sem falatório, gozar a cegueira do escuro e os algarismos vermelhos do aparelho indicando as horas e fazer figas para que este maldito bar pegue fogo. É simples atear fogo em casinhas de madeira decoradas de veludo preto e alcatifa por todos os cantos, até nas retretes. Toda a gente cá dentro. Planear milhares de doces vinganças no meio de toda esta realidade escura e risos. Uma realidade que bem sei que jamais terei coragem de realizar, não por bondade, muito menos por remorso, mas por impotência ou por incompetência. Paragem total, fim de tudo, de gastar, comer, dormir, falar, fumar, fornicar. Por prazer ou dinheiro. Pronto, não cumpro as minhas promessas, nunca o faço, como também nunca consigo sair deste maldito engarrafamento, como não consigo conquistar a minha carta de condução, falhei três. E em que gaveta vazia vou encontrar a criatividade precisa para desenvolver uma tese consistente para acabar a porcaria do curso, onde ninguém conseguiu dizer-me para que serve. Vou acabar por virar caixa de algum supermercado, apaixonar-me pelo esfregão e um balde de lixívia com cheiro a flores, ou então, alongar a boleia e ir lavar pratos para a Suiça. Com bocado de sorte caso com um milionário corcunda com os pés para a cova. Mando à merda a faculdade ou não? Viro indigente e vou vender discos de vinil e livros bolorentos na feira da ladra, ganho dinheiro suficiente para uma overdose de heroína, desato a pintar quadros surrealistas de paisagens amarelas com horizontes vermelhos e vendo ao preço de custo na beira de uma praia. Confecciono bijutarias extravagantes, junto a uns quantos mal vestidos fugidos dos banhos e tento vender aqueles brincos redondos em troca de erva, pão e leite. Acabo o ano que me falta, faço concurso para estagiar num banco, deixo-me engatar pela gerente lésbica para que me possa sustentar. Engravido do primeiro futebolista que aparecer na esplanada da praia ao fim de tarde, depois dos treinos. Faço uma viagem à boleia pelos países do leste, com uma trouxa de roupa e tabaco à cabeça. Levo nos bolsos umas folhas de coca para mascar pelo caminho. Fico horas perdidas na esperança de fazer uns testes para um anúncio de cabelos sem gordura, onde me ofereço para os lavar com cerveja. Mando foto de mamas ao vento para a Playboy num desespero de mostrar o meu talento e destronar algumas vadias sardentas. Entro para o convento, engato umas noviças e me ofereço aos padres e zeladores. Um dia ainda vou limpar os sapatos desta gente toda. Tudo porque sou uma preguiçosa. Puta de vida! Chico, manda mais uma! Fazer o quê?


Sei que se trata de mais uma promessa vã, mas vou tentar não continuar a ir para onde os meus passos me querem levar. Acabo sempre por me perder, levado por estes passos perdidos. Quem manda ouvir o que não deve!

4 comentários:

Anónimo disse...

Começo a descobrir, mais atentamente, a tua enorme capacidade de criares ambientes e personagens consistentes. Um beijo e continuação de uma boa semana :-)

Cris disse...

Queria ter conseguido ler este teu texto, que me pareceu soberbo a julgar pelo início, mas ainda n consegui! Assim resta-me deixar-te um beijinho e a promessa de q o virei ler logo q os meus olhitos mo permitam.

Um beijinho muito grande e cheio de saudades de te ler

Anónimo disse...

Soberbo! Até doi... Bj..:)

SL disse...

Estive afastada durante muito tempo, mas aparecia de fugida quando dava. Tenho tantas saudades...mas agora chegou a bonança e tudo parece entrar na normalidade. Voltei.
Jinhos...adoro ler-te, já te disse, não já?!