quinta-feira, julho 28, 2005

Requiem

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não sei bem quando teria sido o momento, acho que foi ontem, ou teria sido no outro mês? Não sei o momento em que deitei a minha cabeça no teu colo, só sei que naquele instante apenas queria uns tempos de paz. De ouvir a música de olhos fechados. De deixar que a minha respiração volteie num suave bailado e aproveitar a tua capacidade de me fazer parar o tempo. Isso mesmo, parar de pensar tanto, de partir à procura do que eu sei que jamais encontrarei. Quero apenas descansar a cabeça no teu colo. É o momento, quando ouço a tua respiração, que eu consigo esquecer os meus gritos. Sempre os esqueço quando te ouço. E o derramar dos teus sorrisos provocam o desenraizar de toda a dor que trago dentro de mim.

Somos tantos, somos imensos e não sei em qual lugar caberíamos, mas o teu colo, por agora me basta. Simplesmente para eu parar uns instantes, repousar deste enorme cansaço. E sorver docemente o teu cheiro a mar, a jasmim, canela e alecrim. De árvores e terra. O teu cheiro me acalma. Eu, inquieto e inseguro, deixo a minha alma partir em busca permanente. A mesma paz que almeja é aquela de que preciso. Escuto em meu redor frases diferentes em palavras estranhas e todas me causam a mesma emoção. Leio poesia em outras línguas, mas todos me atormentam.

Desconheço em absoluto, os caminhos turbulentos das nossas viagens, quais as estradas que escolhemos percorrer juntos, nem mesmo sei se os nossos trilhos permanecerão sempre num caminhar ritmado. Tudo o que sei é que preciso neste momento de repousar a minha cabeça no teu colo. Quero te ouvir e dentro da tua voz ouvir a mim mesmo. Na procura, lá no fundo, essa migalha de repouso. E de paz. Que dura um segundo, uma hora, o tempo que seja. Mas que seja o tempo certo que marque os nossos sentires. Eu quero apenas não pensar em nada. Como aquele pássaro que se aconchega no ninho, que faz amor, que recomeça, que lambe, que alimenta, que vive. Nem que seja pelo instinto de preservar a espécie.

Que nos mova o nosso instinto humano de buscar permanentemente a felicidade. Que pode durar um instante, apenas, o tempo de eu repousar minha cabeça no teu colo pelos longos instantes que dura um segundo.Depois de se viver todos os ciclones, furacões e tempestades, há que se defender da inevitabilidade das perdas. E embora eu seja um homem sem vários pedaços, porque já foram levados por outros climas, que a minha alma encontre abrigo nos teus olhos. E fique. Pelo tempo que te fizer voar e me fizer morrer novamente. Por tudo isto, deixa que eu repouse a cabeça no teu colo.

domingo, julho 24, 2005

O Beijo

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De um jeito que ela sabia ser só dela, sorriu pelo canto do olho. Foi um sorriso mais do interior, mais sentido do que expressivo. Um intimo sorriso, ou um sorriso intimo. Naquele instante não desejou parar na incógnita. Um sorriso que só nós mesmo sabemos que o estamos a expressar. Tudo porque ainda se sentia um tanto entontecida com aquele beijo. Sentia, mais do que ouvia, as pessoas ao seu redor a chamarem-na. Seria mesmo o seu nome que diziam? Mas ela não ouvia. Nos seus lábio, ligeiramente entreabertos, o gosto, a quentura, a música. O coração tinha já partido à desfilada. Imparável, incontrolável. Um pensamento fugidio, inexplicável, trespassou sua mente e pensou que se fosse um peixe, saberia como é ser pescado. Não se deteve um segundo com tal estranho pensamento e muito menos porque ele surgiu.

Primeiro foi aquela pontada fina, em seguida um ligeiro espasmo agudo, que não é de dor nem de prazer, ou então o prazer da dor. Quem vai sabê-lo? Talvez seja de desespero, aquele que é novo e não cabe. Aquele que sabemos só nosso, mas não encontramos o espaço certo para o colocar.

Não podia contar para ninguém, não que fosse segredo, mas tinha sido um beijo secreto, um beijo selado a lacre, um beijo longo, tempo para parar, como não houve tempo para começar. A sede dos lábios, há tanto tempo sequiosos, fora finalmente saciada. Passara a língua sorvendo cada gota da humidade que ficara em seus lábios dando-lhes uma tonalidade que nenhum batom conseguiria. Tanto fora o tempo para alimentar aquele desejo que crescera dentro de si tão silenciosamente.

Não era para ser, ela bem o sabia, mas acabou por ser o que já podia ter acontecido um dia. Um desejo que crescera com as palavras lidas que aos poucos foram palavras sentidas. Dentro de si ela sabia que seria um dia. Não sabia que seria aquele. E nem era dia. Era noite. Fazia frio naquela noite de Outono, mas ela não o sentia.

Um mar de pessoas ondulavam ao seu redor e ela não as via, nem sequer as sentia por perto, nem os sussurros, nem os olhares, nem as respirações. Só via o desespero crescer em cada instante que mais se aproximava a compreensão, seguida da certeza que jamais conseguiria resistir à tentação. Era um apelo, dos olhos que a fitavam, de dentro de si, das tremuras que lhe percorriam o corpo. Cada palavra silenciosa da sua boca suplicava o encontro, a proximidade, o aconchego de corpos tremendo e então pedia, mais, implorava o toque.

Fechou os olhos e olhou para dentro de si. Procurou na savana dos seus sentimentos o espaço certo para a corrida, depois o bote. Era a fera em si que despontava e tanto ela desejava que fosse. Queria anular as pessoas que rodopiavam à sua volta, eliminar o pavor, dos olhares, das críticas, dela mesmo. Sabia que era um absurdo beijar aqueles lábios. Tantos outros em oferta e logo aquele. Mas ela não escolheu, foi o desejo que cresceu dentro de si, tomou forma e um milhão de interrogações se apossaram dos seus sentidos. O que iriam dizer? Que iria ele pensar, o que as pessoas iriam comentar? E ele? Como iria reagir ele depois? E em seguida como seria? E outros beijos? Haveriam? Contratos, promessas, mentiras, lágrimas? Perguntas que a fustigaram antes do beijo e se dissiparam no preciso instante em que, com a língua, sorveu os resquícios da humidade que ficou em seus lábios. E deixou de pensar.
Depois do beijo, nada além do tumultuar estranho no coração, como se fosse uma montanha russa. E, toda vez que fechava os olhos, lembrava de cada sentir, de cada movimento, da cada movimento dos dedos. Não podia ser verdade, um dia talvez até esqueceriam. Mas no seu íntimo, ela sabia que não. Aquele beijo jamais esqueceria. Tinha a certeza que se transformaria numa lembrança, daquelas que são para toda a eternidade, que ultrapassam os próprios limites da vida.
No coração que chora.
Na saudade que passa.
No dia que volteia o seu bailado.
Na vida que resiste ao desejo de ficar mas parte.
Podia ser humana, encolher os ombros e seguir em frente, esquecer o beijo, não desejar mais nada.
Podia ser a fera, ir além do beijo, deitar em seu corpo, gozar, e no dia seguinte ser mulher de novo.
O que a faria mais feliz?
Nenhum dos dois, nem ela, sabe. Mas não se importa.
Apenas. Deleitando-se com o gosto do que se deu pelo ímpeto.
E foi bom.
Nem a mulher, nem a fera se arrependeram de ter cedido a um beijo que o sonho povoou em muitas noites de insónia.

quinta-feira, julho 21, 2005

Venham a mim as flores

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O que há de mais lindo no mundo são as flores e eu gosto muito de flores. Têm cores muito bonitos e são perfumadas. Disseram-me que elas cheiram bem, mas eu já não me lembro como é. Eu sei que na minha terra havia muitos jardins com muitas flores. E nas casas. Na minha casa parece que também havia.

Tenho andado pelos campos a ver se encontro alguma flor, mas ainda não consegui encontrar nenhuma. E eu que gostava tanto de voltar a ver uma flor, de a ter na mão e de cheirar o seu perfume.

As pessoas dizem que a minha terra é feia porque não tem flores. Eu também acho que é feia e uma vez perguntei porque não havia flores na nossa terra. Desapareceram todas, foi o que me disseram. E não voltam? Talvez voltem, mas vai demorar muito tempo. Eu não sei quanto tempo é muito tempo, mas acho que não é amanhã. E eu gostava Ter já amanhã flores na minha terra.

Disseram-me que ainda há um outro tipo de flores na nossa terra. Poucas, mas há. Onde, que as quero ver? Os teus amigos, os teus companheiros, tu mesmo. Tão poucas, então...!Mas não pode ser! Eu não sou nenhuma flor! E já não tenho amigos nem companheiros. És sim. Tu e os outros como tu, são as únicas flores que nos restam, embora não saibamos por quanto tempo ainda.

Não gosto destas flores e não gosto de ser flor. Eu quero ver uma flor de verdade. Daquelas que deitam cheiro e têm cores bonitas. Dessas é que eu quero!

As pessoas crescidas dizem que as poucas flores que existem na nossa terra são as crianças. Eu não gosto. Acho que são feias, escuras e queimadas. Não têm pétalas, não têm cor, nem mesmo vida. Iguais a mim.

Se somos flores, somos flores perdidas, estropiadas, varridas pelo vento da destruição e da morte, rastejando na poeira do caminho em busca da mãe, do pai, do irmão, da flor que não nasce mais. Procurando um bocado de erva fresca, a sombra de uma árvore, um naco de pão, uma gota de água.

Sinto tudo dentro de mim como se estivesse a arder. Um fogo de labaredas altas. E eu não gosto do fogo. Queima. Mata. E faz lembrar.

Alguém disse-me, para fazer parar as minhas lágrimas, que talvez um dia as flores viessem do céu. Eu gritei e disse que do céu não queria que viesse nada. Da terra. Da terra é que eu quero que venha. Que venha tudo. Do céu não. Não gosto do céu. O céu é mau e traiçoeiro. Não quero nada do céu. O céu é mau e as coisas más não dão flores. Um dia... do céu... não quero...!

Primeiro foram as flores, depois o cansaço e deixei-me cair na estrada. Vieram uns homens e levaram-me para uma casa com muitas camas. É onde estou. Depois veio um senhor de bata branca e perguntou-me o nome e quantos anos tinha. Devagar, fiz sinal com a cabeça a dizer que não sabia. Não me lembro do meu nome nem de quantos anos tenho. Não tenhas medo, pequeno, vamos tratar de ti, disse ele, com uma cara muito triste.

Na cama ao lado estava um menino mais pequeno do que eu. Devia ter três ou quatro anos. Tinha os olhos fechados, não se mexia e quase não respirava. Foi o primeiro que eu vi morrer ali. Depois dele foram muitos mais. Eu não tinha medo. Lá fora vi muitos a morrer, tantos que eu não sou capaz de contar, mesmo que estivesse muitos dias.

Eu sei que vou morrer. Ás vezes vem o senhor da bata branca junto da minha cama e eu ouço ele dizer para os outros que ainda estou vivo.

Não tenho medo de morrer. Tenho é pena de não voltar a ver uma flor, de sentir o seu perfume. Disseram-me que elas talvez voltem a nascer, mas eu não vou conseguir vê-las, nem sequer vou tê-las em cima da minha campa. Já não tenho tempo para ver nascer uma flor nesta minha terra que se chama Hiroxima!

domingo, julho 17, 2005

Perdi a cabeça

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É toda aquela sensação que estremece e me faz vibrar e aí ganho a certeza que sou do tamanho do céu, mas muito mais pequeno do que o teu sorriso imenso. A dor, essa, se esvaiu no tactear dos meus dedos em teu corpo, o mesmo que os meus braços deixaram fugir. A fome ficou saciada de sorrisos e lágrimas. Tudo findou e nada mais resta. Tudo ficou em mim, guardado em algum lugar, onde tento a busca sem sentido. Ah, que sucesso para toda a gente! Mas a verdade é que os deuses estranhariam se não me apaixonasse por ti e eu não os quero zangados. Eles me protegem e enxugam minhas lágrimas, curam minhas feridas.

Agora a estrada é outra e os caminhos de terra batida, poeira levantada, os meus e os teus que percorremos e desejamos seguir os percursos que nunca ninguém traçou. É quando nasce o sonho. Recusamos terminar ontem e, mais uma vez, deixamos para hoje. Aquele adiar que a vontade comanda. Mas hoje vou sair mais cedo.

Mais uma vez esqueci de comprar a comida do meu cão. Também não me lembrei de dar os remédios à minha irmã. Por onde paira o tempo de ficar em casa? Aquele deixar andar, o espreguiçar no sofá, abrir o livro e não passar da primeira página. O quarto de cama desfeita com apenas uma almofada, inundado de confusão de roupas espalhadas. Que faz ali aquela fotografia? Em que século foi ela tirada? Esqueci, como esqueci o seu significado. Uma coisa eu sei, estava mais magro e o cabelo estava um pouco menos branco. Que chato, a mulher-a-dias não varreu a poeira daquele canto. E não arrumou a roupa, mas isso é por vontade minha. Deixa ficar que um dia eu arrumo.

Hoje perdi a cabeça e escrevi muito, tanto que enchi o depósito da caneta de tinta permanente duas vezes. Velhos hábitos que recuso mudar. Na verdade era mesmo necessário ter acontecido tudo aquilo. Aquele horizonte que descobri em ti, o ponto exacto onde o céu toca no mar. Vendo ou não o carro? Não sei. Nem à esquina consigo ir sem ele. Vou trocar. É urgente possuir algo de novo. Ainda não escolhi o outro caminho. O mais certo é ficar por este, cujo fim não vislumbro e o caminhar me enche de poeira que o arrastar dos meus passos levanta.

Tenho saudades da água quente de banheira cheia e inundada de sais perfumados, pequenos luxos que a saudade faz estremecer. Tanta coisa que tenho para te dizer. Tanta coisa que quero dizer. Amo o teu toque, o leve estremecer do lábio inferior nos instantes em que os sentidos dominam a tua vontade. Já te disse que te amo hoje? Deixa, digo amanhã. Prometo. São estes medos. A Maria me embala e me transporta para outros mundos. A Maria Bethânia, senhora e dona dos meus sentidos. Sei que não precisava, aqui no computador tem um mundo de músicas, mas eu preciso de tocar a caixa, acariciar o disco, colocar na vitrola e pôr o som no máximo. Estão a ver porque não gosto de escrever no computador! A vitrola era desconhecida.

Tantos foram os filmes que já assisti, tantos os trilhos que percorri, que tem momentos que acho que a minha vida é pedaço de todos esses roteiros. Talvez por isso adivinho o final de todos eles. Tanta coisa previsível. Mas eu não, eu recuso em sê-lo. Que se zanguem os deuses, mas não o serei. Perdi a pressa. E a vontade de ir para casa. Ora, a minha casa é em todo lado, em qualquer canto, sou um morador do mundo.

quarta-feira, julho 13, 2005

Derrota

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Com um simples olhar sinto em meu corpo o desnudar absoluto de ódio e brutalidade, apontas as minhas vergonhas com o dedo espetado na direcção de muito para além, espalhas aos ventos as minhas fraquezas, saboreias o meu corpo, percorres o côncavo e convexo e, mesmo assim não tens a coragem de me perdoar, pois sabes que nada há para perdoar. Nos teus gestos, em cada um deles, uma agressão, dentro e fora da cama. Sinto que me violentas com um simples sorriso que não deixas que aflore aos teus lábios. Do teu olhar o despontar do meu corpo que nada mais é do que o liquidar de toda a minha integridade e das jóias descoloridas fazes merda, do meu suor enxofre, sangue da minha saliva. Acredita, eu também não te amo, odeio quando viras o rosto para os meus beijos e desvias o corpo das minhas carícias. O nunca prevalece e nos funde, o sempre nos domina e nasce a luta entre nós que nos acovarda e nos afasta. Vejo os teus ataques e depois o esconder do nada que existe e, nas mãos cerradas ocultas os medos. Todos os medos que sublinham a minha mediocridade, que enfatizam os meus erros e permito que ajoelhes junto ao meu cadáver. Nada mais é do que o assassínio do meu mundo, o desprezo da minha luz, o abominar da escuridão para onde mergulhei. Ai essa tua não intenção que, com uma suposta superioridade tentas diminuir sentires que a razão teima em desprezar.

Nada mais me resta do que deitar a correr por todos os caminhos de terra batida, sem que fiquem marcas nem levante pó. Atravessar milhas e mais milhas de caminhos tão íngremes que o simples respirar é já um esforço. Arranco galhos, tropeço em pedras mas nada mais quero do que fugir para algum lugar e pouco importa onde. Quando chegar saberei que cheguei. Nasci para morrer na praia, deixar que se espalhe por ondas que se recusam a se espraiarem e aí eu perdi. Sempre perco no final

Ainda estás aí? Fica então. Mil portais se lançam para que eu volte, para que não me deixes. Eu grito que corro, mas és tu que não podes abandonar-me. Sei que não consigo explicar, mas a verdade é que também não faço qualquer esforço para o fazer. Deixo correr as palavras ao ritmo do sentir. É este precisar que não consigo entender. Preciso que cuspas em mim, mas mais preciso que olhes para mim, que não me ignores, que me diminuas, que me jogues na lama, se for esse o teu desejo, mas não me esqueças. Preciso dar a mão para alguém, preciso não estar só. É o gás carbónico inalado aos poucos, as veias a me levarem ao coma. És a sombra que eu não tenho. Os pregos nos meus pulsos. Como eu preciso ser carregado, porque sempre perco no final. Bem que podes me guiar, massacrar, eu sempre perco. É claro que eu não sei escolher as palavras, não posso dizer nada de bonito, tudo aquilo que não vou além do sussurro. Nem cantar nem tocar. Meus talentos se limitam abaixo de zero. Meu talento maior é roer as unhas e morder os lábios até verterem em sangue. Meu talento é arranhar os braços até arderem, deixando sulcos e vergões. Sempre perco no final.

domingo, julho 03, 2005

A Viagem

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Perdi as contas, enganei na prova dos nove e recusei com determinação fazer a tal de prova real, tudo porque, o número achado no pequeno ecran luminoso da máquina de calcular oferecida na compra de um detergente qualquer, cuja marca nem fixei, desvendou-me que mais de uma centésima de dias, fico atravancado numa carruagem de comboio. Uma infinidade de dias, decorridos em suados minutos. Uma espécie de câmara de gás com janelas soldadas, juntando uma massa disforme de renegados, repulsa nos olhares mortiços e de braços levantados. Proibido cruzar os braços e muito menos, cometer a veleidade de pegar um livro. As vozes que se cruzam, indistintas, gemidos sofridos e abafados, num constante preocupar de não encostar em nenhum outro prisioneiro. Esforço em olhar o vazio, tendo como único desejo, que não entre mais nenhum prisioneiro, pelo menos até daqui a duas paragens. Basta apenas uma formiga para o desmoronar do castelo de cartas humanas. São as minhas preces diárias. Desejo que umas quantas peças se soltem e caiam do tabuleiro e, assim. Respirar, nem que seja por breves instantes.

Já não preciso olhar em volta, para saber de cada milímetro que me cerca, de cada respirar, de cada olhar perdido num cansaço permanente, de rostos exactamente iguais, cansados já nas primeiras horas, sem tempo para recuperar do dia anterior, rugas vincadas em cada traço da vida. Engelhados de martírios por inventar, inertes e indolentes, uma vontade conformada de apenas estar, somente o estar, para eles basta. Depois é o resignar pelo o existir e a falta de vontade de continuar.

Subindo a avenida, aguardar os sinais vermelhos, vontade de passar, receio no passo em frente, atirar impropérios silenciosos ao trânsito caótico, transportar com a passividade que a falta de vontade ordena, calores e suores alheios, micróbios que infestam os sentidos, tão meus, tão nossos. Aguardando o tempo a ser redescoberto, aquele mesmo tempo tão escasso para tanto que nos resta, para o pouco que conquistamos, para o nada que conseguimos. Mantenho ainda as mãos fortemente cerradas, mantendo em prisão com fúria tantos nadas, as tremuras do estômago vazio, a mente atormenta e poluída. A meu lado, uma loura esquelética não fecha a boca um segundo sequer. Que horror, Lorena é um nome horroroso, feio e eu gosto de relógios, mas só daqueles que a gente pode girar os ponteiros e ver as horas quando esta escuro, ver os números, tas a ver, não gosto é do cinema francês, complicados, nunca os consigo entender, demais para a minha cabeça, para mim, só mesmo os americanos, com eles a gente se entende, gostas deste top, comprei ontem, merda, esmurrei uma unha. Tudo numa enfiada, como quem não deveria se privar e nem poupar o próximo de uma mudez humilde, termina num estrebuchar, geralmente num tom agudo. É o machucar dos tímpanos. As palavras ultrapassam o risco do vácuo, elas se abismam em heresias, blasfémias, fragilizam a saúde de quem tem a pouca sorte de partilhar o espaço. Depois é que a gente percebe um enjoo prolongado aqui dentro, não há bálsamo que substitua o silêncio dos néscios, e não dá nem para explicar que aquele é um filme de terror, o mesmo que passa à nossa frente, pelo menos à minha, e eu que não consigo fechar os olhos. Mas seria a cara dela adorá-lo de paixão, produção e melodrama,

Há dias não me perturbavam tanto estes barulhos quotidianos, estorvando qualquer ponta de reflexão, apesar de conhecer já os fins de meus pensamentos, estreitos riachos que desembocam em um oceano praticamente infinito, indefinido, amorfo e perdido de mim. Sei que por vezes sinto falta de um pouco de voz e cor dos dias diferentes, mas aquele espaço fechado de uma carruagem de comboio me enfastia a tal ponto que não desejo mais que o roçar suave de páginas de um livro ou os leves toques no teclado. E eu sei e sinto que uma leveza de uma fuga me desafia no sentido de que é preciso chegar a um estágio superior, abandonar a fase dos conflitos e tentar reescrever a existência com a caneta de tinta permanente, andar no ritmo do vento, deixar que o pequeno pacote de papel baile na ventania, siga seu rumo sem tanta dor, é preciso um pouco de liberdade, o que não rima com alienação. Eu precisava aprender a conduzir. Comprar carro. Ai esta fome de desejo. O melhor mesmo é regressar ao ecran. De onde nunca deveria ter saído.