domingo, julho 03, 2005

A Viagem

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Perdi as contas, enganei na prova dos nove e recusei com determinação fazer a tal de prova real, tudo porque, o número achado no pequeno ecran luminoso da máquina de calcular oferecida na compra de um detergente qualquer, cuja marca nem fixei, desvendou-me que mais de uma centésima de dias, fico atravancado numa carruagem de comboio. Uma infinidade de dias, decorridos em suados minutos. Uma espécie de câmara de gás com janelas soldadas, juntando uma massa disforme de renegados, repulsa nos olhares mortiços e de braços levantados. Proibido cruzar os braços e muito menos, cometer a veleidade de pegar um livro. As vozes que se cruzam, indistintas, gemidos sofridos e abafados, num constante preocupar de não encostar em nenhum outro prisioneiro. Esforço em olhar o vazio, tendo como único desejo, que não entre mais nenhum prisioneiro, pelo menos até daqui a duas paragens. Basta apenas uma formiga para o desmoronar do castelo de cartas humanas. São as minhas preces diárias. Desejo que umas quantas peças se soltem e caiam do tabuleiro e, assim. Respirar, nem que seja por breves instantes.

Já não preciso olhar em volta, para saber de cada milímetro que me cerca, de cada respirar, de cada olhar perdido num cansaço permanente, de rostos exactamente iguais, cansados já nas primeiras horas, sem tempo para recuperar do dia anterior, rugas vincadas em cada traço da vida. Engelhados de martírios por inventar, inertes e indolentes, uma vontade conformada de apenas estar, somente o estar, para eles basta. Depois é o resignar pelo o existir e a falta de vontade de continuar.

Subindo a avenida, aguardar os sinais vermelhos, vontade de passar, receio no passo em frente, atirar impropérios silenciosos ao trânsito caótico, transportar com a passividade que a falta de vontade ordena, calores e suores alheios, micróbios que infestam os sentidos, tão meus, tão nossos. Aguardando o tempo a ser redescoberto, aquele mesmo tempo tão escasso para tanto que nos resta, para o pouco que conquistamos, para o nada que conseguimos. Mantenho ainda as mãos fortemente cerradas, mantendo em prisão com fúria tantos nadas, as tremuras do estômago vazio, a mente atormenta e poluída. A meu lado, uma loura esquelética não fecha a boca um segundo sequer. Que horror, Lorena é um nome horroroso, feio e eu gosto de relógios, mas só daqueles que a gente pode girar os ponteiros e ver as horas quando esta escuro, ver os números, tas a ver, não gosto é do cinema francês, complicados, nunca os consigo entender, demais para a minha cabeça, para mim, só mesmo os americanos, com eles a gente se entende, gostas deste top, comprei ontem, merda, esmurrei uma unha. Tudo numa enfiada, como quem não deveria se privar e nem poupar o próximo de uma mudez humilde, termina num estrebuchar, geralmente num tom agudo. É o machucar dos tímpanos. As palavras ultrapassam o risco do vácuo, elas se abismam em heresias, blasfémias, fragilizam a saúde de quem tem a pouca sorte de partilhar o espaço. Depois é que a gente percebe um enjoo prolongado aqui dentro, não há bálsamo que substitua o silêncio dos néscios, e não dá nem para explicar que aquele é um filme de terror, o mesmo que passa à nossa frente, pelo menos à minha, e eu que não consigo fechar os olhos. Mas seria a cara dela adorá-lo de paixão, produção e melodrama,

Há dias não me perturbavam tanto estes barulhos quotidianos, estorvando qualquer ponta de reflexão, apesar de conhecer já os fins de meus pensamentos, estreitos riachos que desembocam em um oceano praticamente infinito, indefinido, amorfo e perdido de mim. Sei que por vezes sinto falta de um pouco de voz e cor dos dias diferentes, mas aquele espaço fechado de uma carruagem de comboio me enfastia a tal ponto que não desejo mais que o roçar suave de páginas de um livro ou os leves toques no teclado. E eu sei e sinto que uma leveza de uma fuga me desafia no sentido de que é preciso chegar a um estágio superior, abandonar a fase dos conflitos e tentar reescrever a existência com a caneta de tinta permanente, andar no ritmo do vento, deixar que o pequeno pacote de papel baile na ventania, siga seu rumo sem tanta dor, é preciso um pouco de liberdade, o que não rima com alienação. Eu precisava aprender a conduzir. Comprar carro. Ai esta fome de desejo. O melhor mesmo é regressar ao ecran. De onde nunca deveria ter saído.

7 comentários:

Anónimo disse...

Gosto das imagens que utilizas na tua escrita, gosto dessa garra :-).
Beijos!

Anónimo disse...

Senti-me viajante no tempo de mil imagens e ruídos decifráveis, de uma clareza tal, que me reporta para o lugar da cena...

Grata pela visita ao meu blog e pelas palavras lá deixadas...

Um abraço :)

Conceição Paulino disse...

uma viagem assustadora(mas verdadeira e impressionantemente realista)ao fundo da solidão humana nas cidades, nos meios colectivos...Bj

Anónimo disse...

Um aplauso a este texto. Boa viagem até a próxima estação. Um abraço

mar revolto disse...

...cheguei a ti.

SL disse...

Uma viagem perfeita de palavras e alucinante para quem as conseguiu sentir. Parabéns!
Jinhos

mar revolto disse...

Obrigada por teres chegado la, adorei ter chegado aqui...