domingo, novembro 20, 2005

Noite de Chuva

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Podia dizer, filosofando, que perdi no tempo e no espaço, a recordação do gosto que tinha beijar alguém pela primeira vez, sem saber o que vai acontecer no dia seguinte, se tem mesmo que acontecer alguma coisa, mas com aquela sensação que não se vai encontrar no segundo encontro. Mas não digo, porque o primeiro beijo é algo que ultrapassa todos os nossos sentidos, que suplanta a nossa imaginação e que sempre nos faz reviver anos nunca vividos, sensações jamais sentidas. É como se, de repente, todas as nossas incertezas da juventude ganhassem de novo forma e nos dominasse, todas aquelas tremuras.

Perdera já nos confins da memória há quanto eu não sentia aquela interior timidez de encostar meus lábios de olhos fechados aos que, com igual receio, se aproximavam. O leve roçar e o ligeiro entreabrir e depois aquela vontade de me abandonar no colo de alguém. E permitir que viessem todas as palavras e sentimentos num correr suave, sem a preocupação com o que se vai pensar. Tinha mesmo esquecido como era delicioso dividir tudo, absolutamente tudo o que se tem vontade, sem disso se tomar consciência. Como as águas do rio, ou as noites de chuva. Deixar que as palavras brotassem ao ritmo da melodia que nos embalava, com uma certa timidez, sim, até mesmo com receio, mas sem temor de as dizer num sussurro, enquanto as nossas faces de roçavam e as nossas bocas chegavam aos ouvidos, proferindo as coisas que desejávamos ouvir, mesmo a não proferindo, por não necessário.

Esqueci mesmo os pactos dos começos e das promessas implícitas de liberdade, aquela que nos prende e nos ajuda a construir os alicerces. Não lembrava mais da sensação de medo, quando tudo acontece depressa demais, ultrapassa o nosso raciocínio e que nos transforma em indefesos de nós próprios. Perdera no tempo a noção dos passos, cada um deles, das etapas cheias de desordens, quando o que se sente é maior e mais intenso do que o que se pensa e o que se quer. Há quanto tempo eu não me sentia assim, tanto que eu já pensara ter perdido esse tempo.

Depois de dinamitar todas as pontes que me levavam a lugares incertos, atravessar paisagens mortas onde a água deixara há muito de existir, parei junto ao precipício e, naquele instante, tomei a decisão de iniciar a descida, só para ter a possibilidade de experimentar o prazer da subida, devagar, com passos firmes, mas tranquilos e chegar à outra margem. Quem sabe se não terei uns braços à minha espera e um regaço para descansar.

Desconheço em absoluto quanto tempo é que o tempo dura, nem mesmo sei se amanhã sentiremos o mesmo, mas acho que isso nada importa, nada tem importância a não ser o agora, porque é agora que todas as certezas nos dominam e eu sinto a vontade de reviver coisas que estavam adormecidas.

A culpa de tudo foi a chuva, aquela noite de chuva, que nos obrigou a correr para aquele abrigo exíguo e os nossos corpos se encostaram. Apesar de nada dizermos, tivemos a certeza que cada gota de chuva deixava em nossos corpos marcas indeléveis e nos nossos sentimentos uma selva de possibilidades e sensações a explorar. E toda aquela vontade a crescer. A mesma que, a cada instante, está sempre a regressar e a dominar. E assim ai ficar que não caiba mais, até que baste ou que nos obrigue a sair para a rua à procura de uma outra noite de chuva.

1 comentário:

Unknown disse...

Olá Alexandre lá vim eu mais uma vez deliciar-me com os teus belos textos, és um excelente escritor. Beijinhos