domingo, novembro 27, 2005

Em demanda

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Eu sei muito bem que tu sabes, mais do que adivinhas, que eu morro de raiva de ti. Desse teu jeito um tanto ridículo de fingir que não me queres, que não me desejas. Que não me olhas de soslaio quando nos cruzamos e o fazes todo o dia, a cada instante e, quando não estou, é esse o teu desejo. Que me respiras a toda a hora, sempre que cerras os olhos e o teu pensamento voa até mim pela madrugada dentro. Sabes o que me irrita? Essa tua atitude de construíres o engano, em mim, em ti e em todo o mundo. Tu finges e eu finjo que acredito e o tempo vai-se escoando por entre os nossos dedos. Eu sei, tu sabes e, na verdade, toda a gente sabe, mas nós teimamos em ignorar.

Não vou mentir, tu sabes que sou assim, porque isso digo que detesto essa tua mania de me evitar por serem fracas as forças de me resistir. Na verdade não é isso que desejo. Apenas anseio que termine a tua própria resistência e partamos em demanda do espaço que seja nosso. Essa tua constante dissimulação faz fraquejar a minha vontade e eu fico, sentado naquele penedo olhando o mar, única companhia da minha solidão. E desta forma tu escapas do meu pensamento e conquistas o meu desafecto. Morro de raiva de ti, do que sinto e não devia, do que sentes e não mereço. E toda esta vontade de afagar o teu rosto com a ponta dos meus dedos, de beijar o teu pescoço, de deixar a marca, a nossa marca. Aquela que só nós identificamos.

Gostaria de te arrancar desse teu esconderijo e voltar a afogar-me nesse teu cheiro e assistir ao lento progredir da química perfeita que os nossos cheiros possuem, deixar que a metamorfose se conclua. Ainda recordo aquele instante em que descobrimos a forma como eles se combinam para formar o perfume que sempre acaba por nos inebriar. Lembro que disseste entre risos cristalinos que, se pudéssemos prender num frasco, ele nos renderia uma fortuna. E eu respondi que ninguém vende a sua alma. Tu retorquiste com um beijo, cujo sabor ainda o mantenho.

E é aqui que eu sinto a raiva a crescer de não conseguir descobrir a fórmula, decifrar a equação e não encontrar outro cheiro que em mim seja o adequado. Inadequado é odiar o teu atraso, a tua distância, o teu propositado deixar andar. Um dia, talvez, quem sabe, quando tiver a certeza que não fico presa, que não te aprisiono, dizes. Ouço e fico no meu silêncio. A ele me abraço e deixo que me transporte para outros espaços, para outros tempos. Tempos que o tempo esqueceu. Mas tu não desistes e continuas não desejar construir um passado que ainda não vivemos.

Pensas que não sei, que tudo fazes para manter essa imagem de quem nada precisa, muito menos de mim, mas no fundo, os teus pensamentos são povoados com a minha presença e, apesar da distância, respiras o mesmo ar que eu. E é nesses instantes que descobres, mas não reconheces, que não sabes mais viver sem mim. Eu sei, tu sabes e, na verdade todo o mundo sabe. Para quê então as desculpas, mais para ti própria do que para mim, as fugas a uma realidade que já nos absorveu? Sabes que começo a ter medo desse teu medo? Essa é a razão porque o odeio, mais o meu do que o teu e nem me perguntes porquê. Não vais perguntar porque nessas tuas madrugadas de silêncios encontras sempre todas as respostas.

Detesto escrever em vão e sei que vais fingir que não leste, mesmo depois de ter imprimido e lido esta carta dezenas de vezes, até decorares cada palavra, saberes de cor a posição de cada vírgula. Mas fazes questão, com um ar apressado, que não leste, falta de tempo, justificas, não recebeste, explicas, atirando para outros uma responsabilidade inexistente.

Abomino essa tua maneira de fingir desfazer os meus sentidos, de desprezar as minhas coisas, as mais simples, aquelas que construí e todas as outras que sempre sonhei construir. Grito, de calças arregaçadas, pés descalços, no meio das ondas que se espraiam na areia. Falo em silêncio, olhando para o horizonte em todos os fins de tarde. Escrevo palavras que, apesar de afundado numa inconsciência, a minha consciência vai ditando e a caneta desliza pelo papel, falhando por vezes a tinta, o que me faz zangar. Por fim o nada e o nunca se conjugam e eu, exausto, deixo-me cair na cama onde sei que não vou dormir.

Confirmo na solidão da minha cama que és o pior pedaço de mim e detesto tanto carecer do teu sabor, da suavidade da tua pele, do estremecer do teu corpo, dos teus gemidos incontidos e sinto raiva desta minha tanta vontade de te ter. De ceder ao que o meu corpo suplica, ao que a minha alma implora. Todo este meu desejo de ultrapassar os limites, esta necessidade de sentir o teu sabor, esta louca vontade de te ter e toda a raiva em crescendo de ceder toda a vez que o teu corpo pede, a tua alma implora e sem nunca nada me dizeres. Tu sabes o quanto te preciso de te ler.

Recorda aquela noite quando, de cabeças encostadas, os braços apertando os nossos corpos e deslizamos pela pista de dança ao ritmo de uma quase valsa. O cantor não sabia, mas naquele instante, ao cantar o La Bohéme, do Aznavour, fez-nos voar até à nuvem mais próxima. E ficamos nos braços um do outro muito depois dos últimos acordes terem desaparecido no ar.

E são esses acordes quando ultrapasso os limites no teu colo, quando te sinto inteira em meus braços, quando acaricio os teus seios, quando beijo tua boca e quando todas as loucuras perdem sentido. Morro de raiva de te amar tanto. E é esta estúpida paixão que me faz querer-te cada segundo, completa, e procuro, em desespero, esconder em teu corpo toda a denúncia de um amor que ultrapassa as nossas vontades. A tua língua, essa do coração, que eu sempre tento aprisionar.

Sei que, num qualquer instante vou ceder à tentação de te matar de amor, de te violentar de prazer e deixar que a fogueira aumente.

E se queimar e a gente morrer.
E se acabar, que seja de vez.
Porque se não for inteiro, pela metade eu não aceito.
Eu te amo e te odeio.

Esta foi a carta que escrevi, que não enviei, que desconheces, pois não é mais do que uma carta perdida.

2 comentários:

Unknown disse...

E porque não a mandas-te Alexandre!!!acho que o destinatário precisava de saber dela...Ou é filosofando...Beijinhos amigo

Cris disse...

A Adryka tem razão... há coisas q n se devem calar!...

Sabe bem ler um texto assim!

Um beijo