quarta-feira, outubro 19, 2005

Diário de uma alma errante (II)

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Noite 14.610

Podes acusar-me de tudo. Aceito. Sinto, mais do que sei, que muitas vezes, no silêncio do teu olhar, leio uma condenação de uma inexistente realidade. Mas, apesar de tudo eu respeito a tua carência, percorro o teu rosto com a ponta do dedo, gosto da barba mal feita, muito lento e muito ao de leve e com ele desenho galhos, desvios e ramificações, desenho círculos concêntricos e, finalmente, no canto da boca, quase a roçar os lábios, uma cruz. São gestos e movimentos, leves toques que a minha vontade ordena. Talvez signifique que eu sinta por ti algo um pouco parecido com o que chamam de amor. Ou então tudo não passa do sentir de uma pequena fúria que tenta quebrar a monotonia deste meu estático e cinza interior.

No espaço que mais uma vez nos recebeu, fito a luz fraca da vela que, num gesto inconsciente, resolvemos acender e no oferece o esboço dos nossos rostos. É nesse instante que venero a tua presença, que sorrio na penumbra e o meu coração rejubila por estares aqui mesmo apesar de eu não ter a certeza da tua presença. Gosto da penumbra, tu sabes, uma vez te confessei, com a cabeça repousada no teu regaço. Foi uma confissão a modos que despropositada. Mas tu sabes o quanto eu aprecio a penumbra, é aqui que me encontro, é aqui que encontro nós os dois. É quase como se estivesse de olhos semi-cerrados, um pé aqui e outro nos meus sonos mais soturnos, complexos. Com toda aquela complexidade de que, sem disso ter consciência, derramo nas páginas deste diário. Ora, também quem é que vai ler! Nem tu, que vasculhas todas as minhas gavetas à procura de sinais de traição, poderás encontrar este caderno de capas pretas. Apesar de estar a falar contigo nestas linhas, repara como ganhei coragem e o faço na primeira pessoa, jamais saberás o que digo, como, afinas, não sabes o que sinto por ti.

Na verdade só posso mesmo sentir a tua pele nesse teu universo opaco e oco, onde poucas vezes permites a entrada. Só posso vislumbrar as tuas células, essas que se misturam e se separam, como se fossem uma colcha de retalhos, tentando proteger-me do frio, esse frio que permanece, mesmo nas noites mais quentes, fina película de quentura. Mas tu, por gozo, por obrigação ou porque nada mais tens que fazer, abrigas-me nos teus braços e me proteges deste meu Inverno perpétuo. Porque teimas em me escudar de um mundo que se despedaça e desaba nas minhas costas? Descansa, não precisas responder. Na verdade, nem perguntei.

As horas vão passando, o sono não vem, sinal que o tempo não pára. Aqui, neste silêncio, apenas o arranhar da caneta no papel, lá fora, a fruta apodrece, cai e se desfaz no chão duro e poeirento. Gente que passa e não olha. Os esfomeados estão em outro lugar. E esta incoerência que permanece. Mas os temas. Esses, não mudam. Sabes que nada imploro, mas agora peço que não te assustes com a minha franqueza, tenho medo, tu não sabes, nunca o confessei, mas tenho medo de te perder. E isto é apenas o que posso dizer perante a minha impotência. Procuro agarrar, com as forças de todos os meus sentires, as rédeas de cada sílaba que me escapa em cada respirar, destruir todas as palavras erradas, e tantas elas são, amarrar com fios de aço todas as minhas verdades que não disse e as mentiras que omiti, minhas misérias, minhas loucuras e toda esta imensa solidão que dói e que muitas vezes me atira para uns braços estranhos e uma cama desconhecida. Dou, mais do que procuro, prazeres de uns quantos instantes. Momento em que a solidão é mais suave e eu fecho os olhos neste meu engano.

Não tarda aí os primeiros raiares do dia e o sono, esse, viaja por lugares distantes. Que seja. Sei que não mereces encontrar em mim mais temor, desejos de terra firme e a segurança de uma árvore milenar e nunca uma jangada perdida em mares de horizontes desconhecidos. Sei que tu sentes a minha alegria nervosa quando te aproximas de mim, quando me quedo nos teus braços. Deixo que entres no meu barco, pegues nos remos e marques o rumo. De olhos fechados deixo-me embalar nas tuas vontades que, em desespero, procuro que sejam também as minhas. Estremeço quando acaricias os meus seios, descoberto que foi o meu segredo, e em teus braços sigo viagem, com destino a um porto que nunca encontro, Não, não por culpa tua. Traumas de um passado que tento olvidar. Mas esquece! Deixa que meus braços apertem o teu corpo, arranhe as tuas costas, e receba em mim o explodir de uma nostalgia. É o mar se apossando da minha vontade num esforço de me distrair de mim, numa tentativa, mais uma, de encontrar a ponta da corda para me prender aqui, na ancorada e, assim, de me proteger de mim.

As ondas que levam o nosso barco exigem a paga da dor e para aportar a um porto seguro custa essa dor pequena e longa que aniquila o coração, que o estrangula. Estupro as minhas linhas, violento meu corpo, atormento minha mente. Em todo este silêncio, ouve o meu grito. Quero mais do que tu me podes dar, mas que feliz fico, com o pouco que me ofereces. Perdoa o desconexo das palavras e o complexo das frases, mas é assim que estas páginas do diário serão escritas e nada farei de diferente.

Sou a droga e o vício na minha própria droga. Corrompo meu sangue, destruo a minha mente, nado furiosamente contra a corrente, fico cega com a com a pressão e me emociono com toda essa fragilidade. Deixa que as minhas lágrimas percorram os caminhos que sonhamos e me comova com a nossa carência, a tua porque gritas em silêncio, a minha que me refugio nos gritos. Esta nossa ausência que emoldura as paredes vazias que nos fecham e aprisionam. Desejava fugir de mim, queria fugir de ti.

Da outra sala ouço uma música de som bafiento, as minhas pálpebras pesam luto, lamentam o meu precoce velório. Que demora tanto, segundos transformados em séculos quando aguardamos em solidão. Sinto a vontade louca de te abraçar com uma força que não tenho, eu te amo, com um amor que eu nem sei se posso dar a alguém. Terei coragem e renúncia para tal? Ouve meu grito e fica comigo, segura o meu ramo de flores murchas, agarra as minhas mãos e se for essa a tua vontade, beija-me. Não me deixes escapar mais uma vez de ti. Mesmo que tenhas de me condenar.

2 comentários:

Raquel Vasconcelos disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Raquel Vasconcelos disse...

Porque as lágrimas teimam em ficar presas na alma, prestes a cair, em cada linha que leio? Como se guerra alguma, violação ou condenação à morte deixassem de fazer sentido. Como se perante tantas palavras, e de forma tão profundamente bela, a maldade da humanidade deixasse de fazer sentido.
Nestes momentos, existir, e um dia ser mais que isso, faz sim, todo o sentido. Porque é impossível tanta emoção desfragmentar-se no vazio.

Beijo