terça-feira, março 15, 2005

O Vicio dos Sentidos

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Nos dias em que chegava a casa, já com a passarada no seu chilreio de despedida, era sempre o mesmo, aquele olhar perdido no espaço e num tempo por descobrir, entre um não sei bem o quê hesitante e o esforço do compreensivo, enquanto que no entretanto, eu passara a noite percorrendo os meus caminhos e visitas de portas fechadas e janelas entreabertas. Aqui e além, procurando o esquecimento, o deixar para lá, num pequeno copo de uma bebida, repetida umas quantas vezes, procurando no fundo do vidro uma resposta que tardava. Depois vinham os prantos internos, derramando torrentes num desespero de silenciar dragões.

Aquele ritual repetido vezes sem conta, num contínuo rodopio, a olhar-me com os olhos muito para além de mim, penetrando o meu âmago, desventrando minhas fantasias, num querer reprimir meus anseios, com aquele seu perfume doce e fresco que sempre me fazia cerrar os olhos. Os gestos contidos no seu exagero, com o dedo virtuoso e imaginário em riste, apontando que a vida é muito mais do que uma colecção de regras, fórmulas e sentimentos calculados.

Não existe revelação do que essa, somos, e no verbo nos afirmamos, naquele é arrancado bem de dentro e atirado de chofre, para que fique ali, feito estátua, inerte e implacável, exigindo um amar sem questão, borrar muitas fronteiras e, se tal for os desejos dos deuses que dominam o nosso querer, pois que seja. Perecer no meio de uma tempestade bem violenta e que o vento liberte os cabelos embaraçados entre os galhos de muitas árvores antigas. Pode ser que, desta forma, de um jeito que o gesto determina, arremesse a tristeza para um lugar que não seja dentro.

Nos dias da minha chegada bem que eu podia perceber, naquele doce acordar, com toda a nitidez que a névoa permite, no fundo dos seus olhos, de um negrume incomparável, surgia ligeiras faíscas lépidas de querer entender o que está para além da carne, mas isso sempre esbarrava na impossibilidade de o fazer, pela simples prova de que somos apenas o que podemos ser: nós mesmos.

E ainda que as manchas se alarguem, se multipliquem e se espraiem por infinitos, ainda que muitas vezes os nortes percam o rumo e terminem sem direcção, quero e exijo que o meu caminhar, lado a lado, ou simplesmente tendo por companhia o vazio fátuo de um desejo que me obriguei a silenciar, siga por caminhos que, numa noite de tempestade, trilhei até à fronteira de uma vontade que viciou os meus sentidos.

1 comentário:

Cris disse...

A vida leva-nos, por vezes, a viagens ao interior de nós mesmos que nos deixam a alma a transbordar de fadiga e de tristeza...

Li o teu texto, sentada num desses bancos em frente ao rio e senti nele as correntes e as marés do teu sentir... a tua alma derramou esse tom de fim de tarde, de um doce-laranja-triste que humedece o canto do olhar...

Deixo-te um beijo...